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Sempre gostei de vizinhos. De lhes sentir a presença, de escutar os sons que marcam a rotina dos dias. Já tive vizinhos simpáticos, alegres e conversadores, vizinhos sisudos e calados, vizinhos que nos convidavam para jantares prolongados e vizinhos que ameaçavam chamar a polícia se cozinhávamos depois das 9h30 da noite.
Aqui onde agora estou, encontro todos os dias um vizinho sentado nas escadas, à porta do prédio, por ali perto. Está sempre sozinho e calado. Segundo explicam os médicos, o aparecimento de tranças fibrilhares e placas senis, característicos de uma doença progressiva, degenerativa e irreversível, impossibilitam a comunicação entre as células nervosas. O que vemos, e para isso são escusadas explicações, que seriam sempre inúteis, é um silêncio enorme, imenso, que se instalou profundamente. Digo bom dia quando passo e aceno um gesto e um sorriso.
Na maior parte dos dias, que são quase todos, não há qualquer reação. O rosto continua fechado e ausente. Poderíamos dizer que o mundo corre ou anda, dança, canta ou chora e ele assiste, mas não é verdade. Ele não está lá. O mundo é um lugar onde ele já não cabe, que está fora e longe de si, onde ele não sabe andar, de que não se lembra, de que já se esqueceu, que é incapaz de acompanhar e compreender. Nos dias bons, que são muito poucos, acho que responde ao meu aceno, parece-me ter visto um sorriso, quero acreditar que já / ainda me conhece.
Aqui há dias, esqueci-me das chaves de casa. Deve começar assim… somos afinal tão vizinhos uns dos outros nos limites que nos limitam e se confinam. Parada à porta do prédio, procurei na mala, na pasta, nos bolsos… lembrei-me que já não é a primeira vez que me esqueço! Só muito depois reparei no vizinho, no interior do prédio, sentado nas escadas, a olhar para mim.
Perante a minha atrapalhação, levantou-se das escadas, veio abrir-me a porta, desviou-se para eu entrar. Sorri, cumprimentei, agradeci, expliquei as minhas pressas e distrações. Mais ou menos por esta ordem e pela ordem inversa. Fechou a porta e voltou a sentar-se nas escadas. Não houve palavras, nem sorrisos, nem gestos. Nem foram precisos. Quando a memória de quase tudo se apagou, e já não conseguimos alcançar as palavras que o nomeiam, ainda encontramos formas de mudar o nosso mundo, mesmo que aí já não seja o lugar onde estamos.
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