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Foi no final de Fevereiro deste ano que entrei num comboio com destino ao Algarve. Parei no primeiro lugar vazio que avistei. “Dá-me licença?”, perguntei eu. A pessoa lançou um olhar que dizia preferir não ter companhia, contudo acabou por acenar com a cabeça dando o seu consentimento. Era uma senhora de cabelos grisalhos, com uma presença harmoniosa. Passado algum tempo, atrevi-me a perguntar qual o motivo da sua viagem. A precisão da sua resposta surpreendeu-me. “Quero admirar a beleza do nosso país!”. Sem dúvida que uma das melhores formas de admirar a excelência de Portugal era peregrinando nestas carruagens estremecidas. Sustentei a urgência de um regresso à tradição romântica das viagens de comboio. A senhora assentiu. Depois, voltado para a janela, mergulhei numa imersão tépida que o desfilar da beleza paisagística proporcionava.
A minha companheira de viagem saiu na estação seguinte. Entretanto, entrou um senhor que se sentou ao meu lado. Quase imediatamente, começou a dormir. Continuei sentado onde estava, silencioso, mas com os sentimentos vivos. A realidade do outro lado da janela fazia-me distinguir o meu próprio espírito tal como era, na sua real potência e nos seus reais limites. Recordei-me dos tempos de escola e senti uma especial nostalgia por eles. Quando se é jovem, quer-se que as emoções sejam como as que se lêem nos livros. Queremos que elas subvertam a vida e criem uma nova realidade. Com o passar do tempo tudo muda, deseja-se que as emoções apoiem a vida tal como ela se tornou, que digam que tudo se encontra bem.
Assim borbulhava a minha alma!
Atrás de mim, os passageiros começaram a murmurar numa agitação antecipada. Era o vendedor de doces de figo, o senhor Domingues Terruta. De cesto de verga na mão carregava delícias para os passageiros, daquelas que fazem rugas de contentamento na face humana. Os doces de figo assumiam diversas formas e eram cuidadosamente envoltos num radioso papel celofane amarelo. Um menino perguntou: “Tem a galinha de figo, Sr. Terruta?”, ao que o vendedor respondeu, encolhendo os ombros: “Já vendi todas. Às vezes há, outras vezes não há, é conforme calha a sorte… Toma lá uma estrelinha de figo e amêndoa para não ficares triste”.
Metro a metro a viagem sucedia.
Noutra estação reparei numa rapariga que entrou e se sentou no limite do meu campo de visão. Falava ao telefone. O senhor sentado ao meu lado acordara. A voz da rapariga surpreendia realmente pela sua entoação. Falava com impecável segurança e pureza. É na língua que reside uma parte importante da origem natural em que o entendimento se consegue livremente, instintivamente, sem perplexidades, sem atritos. É pela palavra, instrumento essencial da aliança humana, que se pode casar todas as gentes que sentem e aceitam uma pátria.
Entre as ladeiras da serra e o litoral estendido ao sol passávamos pelo barrocal algarvio. Levantei-me para abrir a janela. Com a cara a sorver o vento deixei-me inundar pelos imensos perfumes. Aprendera que respirar podia ser um sensual prazer. Era bom sentir o fino aroma da flor de laranjeira misturado com o repousante bálsamo das figueiras e alfarrobeiras. Que linda era também a fluorescência prodigiosa das amendoeiras em flor! No Algarve parecia nevar com excepcional esplendor. Ainda adiante, numa horta, uma família trabalhava a terra com arte. Lá ao longe, sempre incansável, o assobio da locomotiva povoava o céu. Tinha energia para puxar um terço da humanidade. Afagado pelo peso das rodas, o caminho-de-ferro cantava, acordando a serenidade rural.
A viagem estava prestes a terminar. Apetecia-me brindar ao encanto da jornada. Que pura alegria! À saída, o comboio silvava de portas abertas. Para lhe acalmar o feitio, prometi-lhe que voltava para uma nova viagem. Tinha bilhete de ida e volta.
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