Em Abrantes



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            O Luna Hotel Turismo associa conforto e bom gosto. Abriu portas ao público em 2017, no imóvel do antigo Hotel de Turismo de Abrantes, uma obra que, a meu olho desarmado de saber, tem caráter e exibe o cunho da boa arquitetura.

            Da varanda do nosso quarto, o olhar alcançava o Tejo, montes, edificado diverso e, num formoso primeiro plano, buganvílias. Espalhada por encostas próximas do rio, Abrantes reunia condições para ser uma terra linda, mas a arquitetura urbana deixa a desejar.

            Ali se vê, ainda assim, património interessante. Dele dou notícia nos próximos parágrafos. No cômputo das virtudes de Abrantes, cumpre dizer que, como noutros burgos portugueses (Santarém, Viseu, Guarda…), o visitante não precisa, a fim de se esquivar dos turistas, de buscar recessos.

            António Botto (1897‑1959) foi um dos bons poetas portugueses da primeira metade do século xx. Mitómano, é certo, mas prejudicado por ser pobre e homossexual. Veio ao mundo em Casal da Concavada, no concelho de Abrantes. Esta cidade atribuiu o seu nome à biblioteca municipal, que funciona em dependências de um convento dominicano do século xvɪ. A biblioteca tem vista para o claustro e pontos de leitura agradáveis, a reforma de que o espaço cenobítico foi alvo adequou‑o à serventia presente.

            A Igreja de São João Batista, de risco maneirista, resulta da reconstrução, durante a dinastia filipina, de um templo anterior com o mesmo orago, erguido por vontade da rainha Santa Isabel. Antes de partir para Aljubarrota, nele assistiu D. João I a uma missa. E lá voltou depois, em ação de graças pela vitória. A igreja apresenta sinais de degradação, oferece conforto à alma, mas não ao corpo. Devo, porém, acrescentar que apreciei a cobertura abobadada da capela‑mor, de pedra e dividida em caixotões.

            O Jardim do Castelo mostrava‑se digno de bilhete‑postal, a primavera não só o verdejava como lhe oferecia a boa tinta de buganvílias, rosas, peónias, escudinhas e margaridas. O deleite visual prolongava‑se graças à observação da paisagem, que compreendia rio, cidade, campos e o Outeiro de São Pedro.

            No curso da história, por exemplo durante a Reconquista, o Castelo de Abrantes teve importância militar e estratégica. No seu recinto, a torre de menagem, o Palácio dos Governadores e a Igreja de Santa Maria do Castelo chamam a atenção.

            Da igreja, destaco o forro da capela‑mor, com azulejaria hispano‑mourisca de corda seca, e, sobretudo, a arte tumular gótica no Panteão dos Almeidas. Refiro‑me aos monumentos sepulcrais de D. Lopo de Almeida e de D. Diogo de Almeida, seu pai, na capela‑mor, e àqueloutro de D. João de Almeida, no lado da Epístola da nave. A beleza e o refinamento justificam, por si só, a visita a Abrantes. Ainda no corpo do templo, no lado do Evangelho, acham‑se os túmulos maneiristas de D. António de Almeida e de D. João de Almeida, menos apelativos do que os outros três.

            Não será descabido afirmar que, na Igreja de Santa Maria do Castelo, fui do Capitólio à Rocha Tarpeia. Empós de andar no meio dos fastígios da arte e da estética, fui vítima de um acidente que me deixou estendido no chão por algum tempo. Valeu‑me o cuidado pronto de João, o segurança da igreja, e, mais tarde, o zelo e a competência de Mafalda, da Farmácia Silva. Apresento‑lhes a minha gratidão, a eles e a um certo modo de ser português, prestimoso e protetor.

            A Igreja da Misericórdia e a Igreja de São Vicente estavam fechadas. No respeitante à primeira, detivemo‑nos ao carão do seu portal lateral renascentista, não pudemos ver os painéis pintados cuja autoria se imputa a Gregório Lopes. Quanto à segunda, restou‑nos observar o seu portal maneirista. Tampouco entrámos no Museu Ibérico de Arqueologia e Arte.

            A palha de Abrantes, originária de um mosteiro da cidade, é um doce feito com gema de ovo e amêndoa e leva cobertura de fios de ovos, que ficam tostados depois da passagem pelo forno. Diz o povo que a designação decorre de, no porto fluvial de Abrantes, pararem embarcações que transportavam palha destinada aos animais de tiro de Lisboa. Tornou‑se dessarte comum ouvir «se queres palha, vai a Abrantes».

            A tigelada de Abrantes teve, provavelmente, berço conventual e é confecionada com ovos, leite, farinha, açúcar, raspa de limão e canela. Em conformidade com o cânone, vai ao forno em tigelas de barro.

            Numa pastelaria, comprámos esses dois produtos regionais que, acreditávamos, só nos poderiam aprazer. Todavia, a boa fortuna não estava connosco: a palha e as tigeladas não tinham sabor.

            Melhor sorte nos tocou no restaurante A velha, assim chamado em homenagem à proprietária da taberna que existiu no local onde ele opera. Ao tacho vão produtos da zona, a cozinhar segundo receitas antigas. Quem serve sugere aos clientes a partilha das doses.

            A lista de entradas causava o embaraço da escolha, incluía rissol de lucioperca e aioli de salsa, sopa de barbo e suas ovas, ceviche do rio, tártaro de vitela e tostas, lentrisca com picle (pepino) e maionese de molho de ostras, e as duas iguarias que pedimos, cogumelos e grão escoltados por ovo cozinhado a baixa temperatura e escabeche de perdiz acolitado por tostas e batata‑palha.

            Em matéria de pratos principais, saliento o filete de robalo, pescado no Tejo depois da desova, guarnecido por arroz de tomate e pesto (a nossa escolha), o pernil de porco confitado durante 24 horas, acompanhado por arroz de coentros e limão, e a açorda de peixe do rio com broa de milho.

            No conjunto de sobremesas, ditavam leis as bilhós com caramelo salgado, presunto e gelado de queijo de cabra, a tigelada de Abrantes com crocante de amêndoa e gelado de limão, e o pudim de azeite, tributo ao ouro líquido da terra. Elegemos as bilhós, que são bolos fritos de abóbora e farinha. N’A velha, o caramelo salgado substituiu a abóbora.

            Esta casa justifica realce: cozinha de estalo (não faço menção especial, gostámos muito de tudo o que comemos), quantidades satisfatórias, serviço merecedor de cinco estrelas, decoração criteriosa e o moderno bem acamado no antigo.

            Em passagem anterior, mencionei António Botto. Termino com versos dele que me poderiam servir de lema e que, seguramente, atravessam os meus caminhos de viagem: «Bernard Shaw diz que, na vida,/Tudo convém conhecer./E eu, de tudo,/Mais ou menos dou notícia./— Só não sei que sabor tem/A fadiga do prazer.»

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Paulo Pego
Author: Paulo PegoEmail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it.
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