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Nunca fui a Saint‑Tropez e o texto que, em 29 de setembro de 2023, Rupert Neate publicou na edição eletrónica do jornal The Guardian («Saint‑Tropez has become LVMH Ville»: locals slam super‑rich «takeover») serve para mostrar por que razão não tenho vontade de lá ir. O LVMH é, recordemo‑lo, um conglomerado de empresas que comerceiam produtos e serviços associados ao luxo.
Neate revela que, na localidade piscatória em causa, adquirir bens como um impermeável da marca Christian Dior que custa 4 mil euros ou uma mala Rimowa cujo preço ascende a 2 mil euros é mais simples do que arranjar uma cana de pesca ou outros apetrechos para a prática dessa atividade.
A procura de imóveis por parte de milionários, de gente de grossos cabedais, fez voar o respetivo preço e forçou muitos tropéziens a ir viver para outro lado. Mesmo pessoas ricas já não conseguem comprar casa em certas zonas. Os ditos argentários, note‑se, não residem em Saint‑Tropez, só aí passam algumas semanas no verão. A autarca com quem Rupert Neate falou disse‑lhe que, no inverno, há pouca gente na terra e as pequenas lojas têm dificuldade em manter as portas abertas.
Não é recente a presença, acolá, de estrelas e de criaturas com muito bago, mas enquanto Brigitte Bardot e quejandos se integravam na comunidade e jogavam petanca na praça pública, os argirocratas que agora visitam Saint‑Tropez não têm tratos com Monsieur Tout‑le‑Monde, fecham‑se no seu círculo de convivência e escondem‑se nos iates e nas mansões de Les Parcs, o seu éden local.
Os tropéziens estão fartos, fartos até à medula. Acresce que, depois de se lhes vedar o acesso à moradia, estão a ser impedidos de entrar em diversos restaurantes, cujos gestores e cujos funcionários só aceitam clientes de quem esperam consumo e espórtulas de elevado valor. Tudo isto é dégueulasse.
Nunca fui à Comporta. Não sei se os restaurantes que aí operam atuam do modo que referi no parágrafo anterior. Já no que toca ao setor imobiliário e ao abandono forçado da povoação por parte dos locais, há, segundo o que vou lendo, semelhanças com o que sucede em Saint‑Tropez. Não me afeta quem, nas férias, procura a evanescência ou é motivado pelo desejo de ser visto e nada me move contra a iniciativa privada, mas este modelo de desenvolvimento e de atração causa‑me tristeza e não acarreta benefício para o país nem para o comum dos Portugueses.
Não sei se, no Algarve, medram nichos como Saint‑Tropez ou a Comporta. Mas percebi, no seu semblante de Jano, as faces mais modeladas pelos excessos devotados aos possidentes, à uma, e pelos vincos da frustração de quem não consegue ter casa e é açoitado pela subida do custo de vida, à outra parte.
Em pauta estão sintomas de sociedade iníqua e fomentadora da desigualdade. Menciono outro texto de Rupert Neate, publicado na edição virtual do The Guardian em 30 de junho de 2023: Super‑rich warned of «pitchforks and torches» unless they tackle inequality. Neate dá notícia de, numa conferência promovida pela revista Spear’s que decorreu no hotel Savoy, em Londres, os ricaços terem sido advertidos de que, brevemente, podem ter de enfrentar gente munida de «forquilhas e de tochas».
O Portugal social está feito em cacos. Não desejo a insurreição nem o regresso das tochas e das forquilhas, mas anseio por políticas que defendam o Estado Social e a regulação eficaz, que combatam as injustiças e a sobre‑exploração do trabalho. Foi essa a linha seguida pela verdadeira social‑democracia, não se acoime de «radical» quem o sufraga. Esquecê‑lo e não dar resposta aos carenciados equivale a chocar o ovo da serpente: abre passagem a propostas que, essas sim, são extremadas e trazem consigo o germe de um mal difícil de curar.