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A vila de Alcoutim expõe o seu casario numa elevação da margem direita do rio Guadiana. Forçando a comparação, diremos que ali se avista um presépio.
Aqueles com quem metemos conversa limitaram‑se a desfiar queixumes, lamentos reportados à pobreza, à ausência de horizontes, ao rio que quase já só dá enguias, às dificuldades sentidas pelos agricultores, à água que os campos de golfe e o cultivo de abacates consomem. Durante o dia que lá passámos, fui desenhando a imagem de um interior que entrincheira almas e corpos.
O núcleo museológico instalado na Capela de Santo António versa sobre arte religiosa e propõe acervo de reduzido alcance. Convém aos que, como eu, gostam de informações e de sistematização, pois apresenta um conjunto de painéis, dispostos segundo estilos artísticos, com textos e fotografias relativos ao património do concelho. Quanto às esculturas, saliento um São Francisco de madeira pintada, dourada e estofada, do século xvɪɪɪ.
No espaço expositivo do antigo hospital de Alcoutim, presta‑se tributo ao labor de João Dias (1898‑1955), médico que, em época de carência assistencial, fez muito pela saúde dos alcoutenejos e que, se bem percebi, era um humanista. Todos os profissionais de saúde o deveriam ser e muitos o são, mas também há os que, por terem outros intuitos com mais peso ou, simplesmente, por desconhecerem a empatia, nunca o serão. No local onde dantanho João Dias trabalhou, apresenta‑se uma moldura, com quatro imagens e respetivas legendas, que oferece um retrato certeiro da espécie humana. Eis o teor das legendas: quando a morte aparece à porta, o médico é considerado um deus; quando o perigo foi afastado, o médico é olhado como um anjo; quando o paciente começa a convalescer, o médico volta a ser apenas um homem; quando o médico solicita os honorários, é olhado como um demónio.
A Igreja Matriz de Alcoutim é devotada a São Salvador. Diante da frontaria, em empena de bico, o autor destas linhas perdeu‑se de admiração pelo portal de sopro renascentista, simples e fino. No interior do templo, apreciou os capitéis das colunas, os retábulos de talha, o baixo‑relevo colorido que representa o batismo de Jesus e, pela fraternidade, a imagem da padroeira de Sanlúcar de Guadiana, a aldeia que fica do outro lado do rio.
Almoçámos n’O Contrabandista. Dourada para a Jūratė, entrecosto para mim, respetivos sabores dignos de elogio. Nesse restaurante, o pagamento é feito na caixa. Ora, disseram‑nos — adrede não revelo quem — que a patroa, uma mulher simpática, se apodera das gorjetas. Não sei se isso é verdade. Se assim for, o modo de agir da senhora denota alma tecida pela cupidez. Não entendo como se pode dirigir os subalternos e usurpar gratificação a eles destinada. Estou na tarde da vida e nunca tinha ouvido coisa semelhante. Noto que os humanos raramente me surpreendem em razão de atitude nobre ou de elevação de caráter. No entanto, conseguem sempre inventar novas formas de ignomínia.
De barriga cheia e espírito arreliado pela estória que acabo de contar, seguimos para Guerreiros do Rio, lugarejo a alguns quilómetros de Alcoutim. Aí, no Museu do Rio, visionámos um filme cujo tema era o contrabando no Baixo Guadiana. Na região, a fome, a miséria e os interditos do Estado Novo empurraram muita gente para tal modo ilícito de comércio. Por norma, os contrabandistas atuavam de noite — durante o dia, escondiam‑se em barrancos — e os guardas reservavam para si parte dos bens apreendidos. Já pelo efeito plástico, já por se tratar de revivescência de cultura popular, a mostra de miniaturas de barcos que navegaram no Guadiana entusiasmou‑nos. São obras de José Murta Pereira e, no meu parecer, justificam, por si só, uma ida ao concelho de Alcoutim. Desse mundo liliputiano, destaco a réplica do Alcoutim, um barco de carga, e aqueloutra do Jorge, um arrastão.
Voltámos à sede do concelho e apanhámos a lancha para Sanlúcar de Guadiana, um pueblo blanco. As ruas estavam desertas, reinava a quietação, porventura em decorrência do calor e da siesta. A Igreja de Nossa Senhora das Flores achava‑se fechada. Apreciei o seu campanário, que não condiz com a fronte do templo. Perto da igreja, ergueram monumento evocativo de uma dança tradicional da terra, a Danza de las Flores. Informei‑me acerca dela, gostei da respetiva coreografia e dos arcos floridos, mas não consigo ver graça num bailarico em que só participam homens. As mulheres, os seus modos e os seus boleios humanizam o ato de dançar, trazem‑lhe beleza e sensualidade.
De novo em Alcoutim e antes de deixar a vila, espreitámos uma exposição dedicada à vida e à obra de Carlos Brito, outrora figura preponderante do PCP, que desde 1999 ali vive. Respeito‑o, prezo a sua luta por uma sociedade mais justa, admiro os seus esforços em prol de uma renovação comunista no nosso país. Marca contraste com o PCP, uma organização que não toma emenda e defende posição patética quanto à guerra em curso na Ucrânia, um partido de mote supostamente progressista que votou contra a despenalização da eutanásia.