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A visita ao centro de Loulé teve início no Mercado Municipal, edifício que remonta a 1908, de traço mourisco e com vários arcos de ferradura. Foi objeto de reformas, está bem preservado, circular no seu interior e nas áreas adjacentes é fonte de prazer e de conhecimento etnográfico. A exemplo do que sucedeu noutros pontos do Algarve, vimos forasteiros que denotavam falta de asseio: não bastasse a cardina, também vestiam roupa sebosa. Não se tratava de falta de recursos, era — isso sim — uma maneira de fugir à convenção e, nalguns casos, de tirar a desforra da vida rígida e disciplinada que haviam tido nas suas terras de origem, mormente na Alemanha.
A Ermida de Nossa Senhora da Conceição começou a ser construída no século xvɪɪ, depois de a Imaculada Conceição ter sido proclamada padroeira de Portugal. A sua fronte feiosa esconde um interior de truz, que segue o estilo barroco. As paredes da nave vestem‑se de azulejo azul e branco com programa decorativo mariano. O retábulo setecentista de talha exibe, entre outras, imagens de Santa Ana, São Joaquim, São José (respetivamente, mãe, pai e marido da Virgem Maria), do Menino Jesus e, em lugar de destaque na tribuna, a escultura do orago.
Em 2022, foi inaugurado um espaço museal no rincão em que, durante o período de domínio árabe, funcionou um complexo de banhos públicos e onde, mais tarde, se levantou o paço da família Barreto. Agradou‑me ver a Sala Fria, a Sala Tépida e a Sala Quente e ler algumas linhas acerca daquele lugar outrora aberto à higiene e à ablução, e também ao descanso e aos cuidados com o corpo. No entanto, não posso dizer que tal seja a minha praia.
Almoçámos no Retiro dos Arcos. Oferece comida sem artifícios, dei boa nota ao serviço por parte dos funcionários, à sopa de legumes e à vitela estufada com esparguete. Mas o patrão pareceu‑me rude. Uma cliente, mulher hippie, de conversa e modos alternativos, usava um saco Louis Vuitton contrafeito. Enxerguei ali contradição, apeteceu‑me perguntar‑lhe se preza, ou não, o capitalismo.
O imóvel da antiga alcaidaria do castelo aloja o núcleo precípuo do Museu Municipal de Loulé. Na cozinha tradicional louletana aí recriada, além de tachos, peças de louça, cocharros, potes, cântaros e cantarinhas, cabaças, peneiras e outros utensílios, havia uma lareira dotada de sempre‑noiva, ornato que se aplica na parte inferior da chaminé a fim de evitar que a chama e o fumo da lareira enegreçam o resto da chaminé, que dessarte permanece branco como o vestido da noiva.
Diferentes maios, feitos por alunos, professores e funcionários de uma escola pública, estavam espalhados pelo museu. O maio é um boneco, por norma de palha ou pano, que apresenta uma estância de quatro versos e vai associado à celebração da primavera. Em tempos idos, decorava casas e ruas. Atente‑se na quadra seguinte, que um dos maios expostos mostrava: «A Aninha é uma menina alegre/e gosta muito de estudar/Está desiludida com a escola/por causa das greves faltar.» Às vezes, Portugal dói.
Ana Maria Balbino, funcionária do museu, acrescentou explicações que tornaram memorável a nossa visita. Designadamente, disse‑nos o que era o pão de rolão (pão confecionado com a parte mais grossa da farinha, a que fica na joeira depois de aquela ser peneirada), dado aos cães e, se rejeitado por estes, servido aos porcos. E assinalou ter havido louletanos que adossaram as suas casas a pedaços de muralha. Desse modo, só precisavam de erguer três paredes e gastavam menos dinheiro.
Na parte externa da Igreja de São Francisco, gostei de ver o campanário, com três sinos alinhados. O quadro em que ele se inscreve não é bonito, mas o campanário é elegante. Lá dentro, avulta o retábulo‑mor, do século xvɪɪɪ e de talha barroca. Abriga um trono monumental, as imagens do orago e de São Sebastião, mas o que cativa olhos e espírito é o sacrário dourado, que tomou a forma de pelicano com as asas abertas. Eis uma representação do Pelicano Eucarístico. Cristo deu o seu sangue para alimentar o povo. No sacramento da Eucaristia, Cristo está presente sob forma do pão e do vinho consagrados. Bem assim, acreditava‑se que, na falta de comida para os filhos, o pelicano arrancava pedaços da sua carne a fim de os dar às crias.
Era hora de ir ao polo do Museu Municipal devotado ao negócio de frutos secos, que teve e tem peso na vida económica do concelho. O respetivo acervo quase se cinge a uma máquina de triturar alfarroba e a uma máquina de partir amêndoa, cujo titular de patente é um homem da terra, Zeferino Clara Viegas. Este local serve apenas para marcar a importância das atividades em causa no torrão louletano.
Demorámo‑nos no histórico café Calcinha, estabelecimento art déco em tempos idos frequentado por António Aleixo. O poeta popular foi alvo de uma homenagem materializada na escultura, de Lagoa Henriques, existente na esplanada. No passado, as pessoas tomavam ali um poiso consonante com a classe social a que pertenciam. Hoje isso não sucede, mas, entre os que ali se encontravam, discerni uma dicotomia, uma bipartição percuciente: por um lado, o estrangeiro distendido, com jeito de possidente e quiçá instalado no gravy train; por outra banda, o algarvio consumido, que, mesmo acumulando empregos, não podia comprar casa e se queixava da subida do preço do cabaz de compras.
Abandonámos o centro de Loulé e rumámos para o complexo constituído pelo santuário e pela ermida de invocação a Nossa Senhora da Piedade, a Mãe Soberana dos louletanos. Tinham ficado por ver o miolo da Igreja da Misericórdia e aqueloutro da Igreja Matriz, consagrada a São Clemente. Restara‑nos o contentamento resultante da observação do portal manuelino da primeira e do portal em ogiva, enchapelado por gablete, da segunda.
Edificada no século xvɪ, a Ermida de Nossa Senhora da Piedade foi objeto de reformas significativas, mormente no século xvɪɪɪ. Acomoda trabalhos interessantes, como o teto perspético de madeira, o retábulo‑mor, de talha dourada e pintada, a escultura da padroeira e, nas paredes laterais, o lambril de azulejos e os painéis pintados com episódios da Paixão.
Reza a lenda que em Loulé vivia um mouro, escravo de um cavaleiro que dera pela falta de um cavalo. Pelo sumiço do animal, o senhor responsabilizava o seu subordinado. Não obstante os esforços que fizera, o serviçal não conseguira encontrar o equídeo. Lembrou‑se, entretanto, do sentido de devoção dos cristãos a Nossa Senhora da Piedade e a esta pediu valimento. Quando se dirigia para a ermida, o cavalo apareceu. Nisso percebeu um milagre, converteu‑se ao cristianismo e tomou António da Piedade como nome de batismo.
Uma vez que a velha ermida deixou de poder acolher os ranchos de devotos que a demandavam, foi construído um santuário de grandes dimensões, ao jeito de cúpula e inaugurado na última década do século xx. Na ermida, sensibilizara‑nos o fervor de uma senhora que enchia a alma de oração. No templo moderno, os membros de um grupo ciciavam ave‑marias de maneira maquinal e geravam a sensação de santimónia.