Mais um dia em Elvas



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            Visitei, em primeiro lugar, a Igreja do Senhor Jesus da Piedade. O que aí me vergou não foi o engenho artístico e arquitetónico do ser humano, desvelado nas telas de Cirilo Volkmar Machado — Nossa Senhora da Graça e Arrependimento de São Pedro —, nas composições de mármore policromo e na frontaria com duas torres sineiras, encimadas por cúpulas bulbiformes. Foi o sem‑número de ex‑votos, patentes ao público em dependências secundárias da igreja. Ou, talvez seja mais acertado dizê‑lo, o peso de tanta gratidão, fé e crença em poderes de intercessão. Cumpre dizer que o Senhor da Piedade é alvo de intensa veneração no alfoz elvense e que a romaria em sua honra, no mês de setembro, mobiliza milhares de pessoas. O acervo é credor de arrumo digno, que privilegie a qualidade e não a quantidade, como agora sucede. Ele inclui tábuas votivas, desenhos, colagens, fotografias, bordados e peças de cera, produtos do reconhecimento por diferentes tipos de mercê (saúde, emprego, regresso da Guerra Colonial…). O meu destaque vai para uma réplica da igreja, executada com fósforos, feita em ação de graças e obra de um senhor cuja neta passou por sérios padecimentos.

            São diversas as valias do Museu de Arte Contemporânea de Elvas, que acolhe a coleção de António Cachola, composta por trabalhos de artistas portugueses. Está fora dos grandes centros, integra trabalhos de elevada qualidade e marca contraste com o Alentejo, região que avoca terra, montado e tradição. Tocou‑me ver uma mostra — Quem nos salva? — que visava denunciar as crises que o planeta vive e, ao mesmo tempo, contribuir para a respetiva solução, para a salvação. A arte é reino do desajuste e da incoerência, confesso que tive dificuldade em associar algumas das obras expostas aos objetivos referidos. Sunrise é um óleo sobre tela de Adriana Proganó. Talvez eu sofra de apofenia, certo é que nessa pintura com título convidativo enxerguei os tarados e as criaturas estranhas que incessantemente despontam nas redes sociais.

            Assisti a missa na Igreja do Salvador, a antiga igreja do Colégio Jesuíta de Elvas, erguida no século xvɪɪ segundo o molde de outros templos da Companhia de Jesus. A igreja distingue‑se pelos trabalhos de talha dourada, em especial na ousia, pelos púlpitos de mármore policromo e pela composição que se encontra acima do arco cruzeiro: uma pintura a têmpera circunda um nicho com a estatueta de Santiago; o nicho faz parte da imagem de um tronco de árvore; da edícula‑tronco saíram galhos com peanhas onde foram colocadas as figuras de santos da Companhia de Jesus. No topo dessa Árvore da Vida, está pintado um resplendor que tem, no centro, a sigla IHS.

            No museu da fotografia, acha‑se patente ao público a coleção de apetrechos fotográficos, mormente câmaras, pertencentes ao elvense João Carpinteiro. Sou mais dado à estética do que à técnica, prestei pouca atenção à maquinaria e concentrei‑me nas fotos tiradas por João Carpinteiro. Em razão do seu pendor humanista, tocaram‑me na alma. Dentre elas, saliento A roda da vida.

            O almoço, no restaurante Adega Regional, foi um mimo. Aí se aposta na gastronomia alentejana, a carta de sabores varia consoante a sazão. Quando lá fui, da ementa constavam: sopa de cação, sopa de tomate com ovo escalfado, açorda alentejana com ovo escalfado, gaspacho à portuguesa, cação frito com molho de coentros, migas de coentros com presinhas, costeletas de borrego, borrego assado, plumas de porco preto, carne de porco à alentejana, bochechas de porco preto assadas e cachaço de porco preto assado com batata‑doce. Pedi a última dessas iguarias. Acolitada por excelente molho com cebola, revelou‑se uma excelente escolha. A terminar, a sobremesa típica da casa, a telha de amêndoa laminada, sobre a qual se encontrava uma bola de gelado de sericaia com ameixa d’Elvas.

            Observe‑se que a carne de porco à alentejana não é originária da região que lhe dá nome, terá raiz lisboeta ou algarvia. Escreveu João Rosa, historiador e etnógrafo, num livro de 1940 citado por José Quitério[1]: «É frequente vender‑se em Lisboa carne de porcos engordados a peixe nas regiões ribeirinhas, a qual depois de cozinhada não se pode tragar; isso terá sucedido a qualquer bom cozinheiro que, para disfarçar o sabor a resíduos de pescado, a guisou com amêijoas, fazendo, realmente, um prato saboroso, mas muito longe de ser… à alentejana.» Já no Livro de Pantagruel, de Bertha Rosa‑Limpo, em trecho igualmente transcrito por José Quitério[2], pode ler‑se: «Em certas localidades à beira‑mar, onde lhe dão peixe ou buchos de peixe a comer, chega a ser [o porco] intragável de sabor assardinhado. Essa foi a razão por que em tempos as casas de pasto algarvias — perante as reclamações dos comensais ao então gosto sardinhento da famosa especialidade local “carne de porco com amêijoas” — se viram forçadas a recorrer aos porcos do Alentejo e a anunciar “carne de porco alentejano com amêijoas”, para tranquilidade do paladar da clientela. Mais tarde popularizada a receita, o título adulterou‑se pelo país para “carne de porco à alentejana” como se nos montados do Alentejo se criassem amêijoas…»

            Empós de almoçar, visitei o Forte da Graça, construção setecentista numa colina que era importante controlar a fim de defender a cidade. O projeto de quem o concebeu, o conde de Lippe, foi objeto de alterações introduzidas por Valleré, engenheiro francês. Dizem os doutos que se trata de obra‑mestra da arquitetura militar. O forte, quadrangular, tem quatro baluartes, ligados por muralhas. As cortinas de muralha são protegidas por revelins. Um dos revelins dá para um hornaveque, também ele protegido por revelim. Acabei por passar a maior parte do tempo no reduto central do forte, mais precisamente na elegante Casa do Governador, de linhas barrocas. Fi‑lo para ver a paisagem e para perceber a magnificência do complexo.

            A prestimosidade de pessoa que admiro abriu‑me as portas de um orbe que me é estranho, um monte alentejano. Não falo de um monte embonecado para atrair turistas e aparecer nas revistas, antes de uma propriedade de cariz vernáculo, na qual corre seiva alentejana. Fui recebido com obséquio e sem laivo de do ut des. Rodeado de cavalos que procuravam o afago de António, com ele mantive grato diálogo, imerso naquela atmosfera campestre e no privilégio da interlocução inteligente com alguém que se move fora da caixa. Assim, da melhor maneira, terminou a minha excursão ao concelho de Elvas.

[1] QUITÉRIO, José, Bem comer & Curiosidades, 3.ª edição, Lisboa, Sistema Solar, CRL (DOCUMENTA), 2022, p. 159. 

[2] QUITÉRIO, José, na obra e no local citados na nota anterior.

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Paulo Pego
Author: Paulo PegoEmail: This email address is being protected from spambots. You need JavaScript enabled to view it.
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