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Os deuses do serendipismo acompanharam‑nos no passeio por Cordinhã, aldeia do concelho de Cantanhede. A igreja achava‑se fechada, mas não foi preciso andarmos de déu em déu: a primeira pessoa que interpelei — Rodrigo Bastos, um funcionário municipal — não só contactou de imediato a sacristã, para que esta no‑la permitisse visitar, como também telefonou ao presidente da junta de freguesia local, José Carlos, que nos poderia mostrar o acervo do museu etnográfico e agrícola da povoação.
Justamente pelo museu começaram as nossas andanças culturais. José Carlos entremeou os esclarecimentos acerca dos artefactos expostos com notas sobre o mundo agrícola, disse‑nos que, ali, as pessoas vivem sobretudo da vinha — os terrenos da freguesia, de solo argilo‑calcário, estão situados na Região Demarcada da Bairrada — e dos hortícolas (nabo, nabiça, grelo). Entre préstimos diversos, o museu, como outros do mesmo género, teve para mim serventia de dicionário da ruralidade, aprendi o significado de: «cofinho», «podão», «torpilha», «balseiro» e «burra de serrador».
Generoso, o nosso cicerone ainda nos ofereceu sacos e bonés (uns e outros ostentam o brasão da freguesia), vinho e jeropiga, ambos com origem na vinha comunitária de Cordinhã.
Na igreja, consagrada a Santo André, esperava‑nos o marido da sacristã. O templo apresenta sóbrio aspeto exterior. Do interior, destaco o retábulo‑mor de bela talha, os azulejos hispano‑mouriscos da capela‑mor e o teto bem decorado da igreja. No universo atual, de gente dependurada em redes sociais que são instrumentos de autopromoção e palcos privilegiados de maledicência, o exemplo de André deve ser lembrado. Humilde, recusou a crucifixão em cruz idêntica à de Cristo, não se considerava digno disso. Santo André é, outrossim, o padroeiro dos injustiçados.
Ainda não tinha chegado a hora habitual da manja. Mas na Bélgica peno por causa da gastronostalgia e, quando estou na pátria, as badaladas do estômago açodam o tempo da refeição. Fomos jantar ao restaurante Cabana do Pastor, em Carvalho, na freguesia de Murtede.
O primeiro registo foi de desconsolo. Defronte do restaurante, jaz, desativada, a estação ferroviária de Murtede. Ela integrava o Ramal da Figueira da Foz, que fazia a ligação entre a Figueira da Foz e a Pampilhosa. Para efeitos de requalificação da linha, a circulação na via foi interrompida em janeiro de 2009. As obras nunca tiveram lugar e o serviço ferroviário não foi reposto, em prejuízo das pessoas — que o usavam, por exemplo, para irem à praia — e da atividade económica local. Desta forma, impedindo a passagem do sangue nas veias‑caminhos de Portugal, se complica o desenvolvimento do país e as assimetrias saem reforçadas.
No restaurante, perguntámos por pratos típicos do estabelecimento e da região. A Jūratė pediu cabrito assado, prato com boa cotação entre os clientes da casa, e eu decidi‑me por negalhos, que são caraterísticos da zona. Bebemos pinga razoável, um tinto produzido pelo patrão do estaminé. Os negalhos — buchos de cabra recheados com carne de vaca, carne de porco e condimentos — souberam‑me bem, mas deles tirei sobretudo a experiência etnográfica. O verdadeiro mimo prandial foi o cabrito: carne de excelente qualidade, bem temperada e a denotar a assadura certa. Terminámos com pudim de ovos, igualmente digno de encómios. A polifonia que vinha do televisor não me impediu de dar nota alta ao Cabana do Pastor.
No ecrã, ainda desfilavam imagens da coroação de Carlos III, que tivera lugar havia alguns dias. Vê‑las fez‑me perder um pouco da esperança que deposito no século xxɪ.
A monarquia, por mais estribo que tenha na história, funda‑se no privilégio, no nascimento em berço de ouro, acha‑se desfasada da sociedade em que a progressão se baseia no esforço e no mérito. Força a mostrar respeito por quem não merece ser respeitado e gera alguns soberanos sem vocação para a coisa pública, sem sentido de responsabilidade ou, pior, corruptos. Pessoas desonestas às quais todas as portas se abrem e que não têm de se preocupar com o escrutínio.
Pensando na realeza britânica, vejo um espetáculo que sai caro ao contribuinte e muito cabotino — mau ator, entenda‑se — que entretém uma audiência tantas vezes consolada por perceber que se depara com problemas que reis e quejandos também têm.
O regime monárquico parece‑me um anacronismo, já quanto aos princípios, já no que toca à satisfação material dos súbditos.
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