HOMENAGEM AO JORGE TAVARES DA SILVA



Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor!


Meu caro Jorge,

Não chego a convence-me que nos deixaste para sempre, esmagado por um eléctrico louco e cego que não pôde parar, quando tropeçaste naquela maldita pedra saliente de um passeio irregular como há tantos em Bruxelas.
Aquilo que mais me dói é que morreste precisamente meia hora depois de teres deixado os teus amigos que tu próprio designaste por cantinheiros. Tudo nos passa pela cabeça e até um pouco de culpabilidade invade o nosso espírito. Por que é não insistimos para contares mais uma anedota - o tempo do eléctrico ter passado? Por que é não te demos um abraço de despedida mais demorado? Por que é que… por que é que... E por que é que aquela maldita pedra te espreitou com a foice certeira da morte, deixando-nos estonteados, estarrecidos, órfãos para sempre de ti, nosso amigo Jorge?
Eras o grande conversador e animador dos nossos encontros! Tinhas sempre uma opinião nos mais diversos domínios: político, social, histórico, religioso e, claro, gastronómico. Sempre uma palavra avisada, sempre um esclarecimento apropriado, sempre uma informação instrutiva.

Era no restaurante O Cantinho da Cidade que se reuniam os amigos do Jorge e os amantes do bacalhau das famosas quintas-feiras. Pouco depois de teres integrado um grupo de reformados que almoçava para os lados do Midi, fizeste a proposta de nos enviar cada semana uma página sobre a Pesca do Bacalhau - a Faina Maior, com documentação exaustiva, ditada pelo teu exigente carácter.

E já estávamos habituado ao costumeiro ritual. Depois de o Zé Campos lançar a convocatória na terça- feira, de manhã, eras o primeiro a responder pronto, desejoso de estar presente, e não faltavas com o teu folhetim em formato PDF, cuja leitura nos abria o apetite para saborear o fiel amigo, mas sobretudo para termos o gostoso prazer de estarmos mais uma vez juntos. Na semana do teu trágico acidente, tinhas-nos enviado o episódio n° 70 que pensavas seria o último. Agora incumbe-nos certamente a responsabilidade da sua publicação, juntamente com a Corinne, a tua simpática mulher.

Saboreavas as palavras como saboreavas a cozinha portuguesa com cariz de tradição. Investigavas a história das palavras como questionavas a origem de cada receita e sabias dizer quais eram as autênticas e as que a Maria de Lurdes Modesto não tinha respeitado os cânones dos saberes ancestrais.
Muito a Bélgica aprendeu contigo a amar a gastronomia portuguesa e, por isso, a amar Portugal. Conhecendo a sensualidade brugueliana dos belgas, o teu livro – La Cuisine Portugaise de Tradition Populaire, despertou a curiosidade des connaisseurs deste país que não imaginava a riqueza das nossas raízes culinárias e contribuiu para nos sentirmos mais orgulhosos das nossas origens lusitanas.

Eras um homem inteligente e culto. Era um prazer ouvir-te falar sobre a influência da religião na panóplia da culinária portuguesa, sobre as relações entre a Bélgica e Portugal, sobre os judeus portugueses que se estabeleceram em Antuérpia e Amesterdão, sem falar na tua última grande paixão pela história da pesca do bacalhau.

Antifascista de quatro costados, lutaste, ainda jovem, pela democracia em Portugal. A PIDE não te perdoou, e enviou-te para o Forte de Peniche e depois para a 1a. Companhia Disciplinar de Penamacor, de onde desertaste em circunstâncias rocambolescas, atravessando a nado o rio Caia, para poderes sair de Portugal, vindo a integrar, na Bélgica, os teus companheiros de luta antifascista.
Tinhas já agendada para os finais deste ano a comemoração dos 50 anos dos refugiados políticos na Bélgica e pediste a alguns de nós textos sobre a experiência de refugiado neste país.
Outros projectos povoavam a tua imaginação. O teu dinamismo, a tua clarividência e o teu optimismo sobre a vida espantava-nos.

Muitas coisas haveria ainda para dizer. Outros irão certamente completar a tua memória, e está-se proibido de dizer que não há palavras para exprimir a nossa mágoa porque o Jorge era um homem que gostava das palavras, não fosse ele um linguista exímio.

Há pessoas que nos vão fazer falta para continuarmos a viver no nosso RAM-RAM de 2017. Uma delas és tu, amigo Jorge! Boa viagem pelas tuas numerosas paixões!

                            Joaquim Tenreira Martins
Bruxelas 04 de Janeiro de 2017


O ÚLTIMO ADEUS AO JORGE SERÁ AMANHÃ, dia 05 de Janeiro, pelas 10h30
no crematório de Uccle, rue du Silence

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Joaquim Tenreira Martins
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