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(devaneio)
"Só de pequeno retenho impressões tão nítidas como da primeira hora: ouço hoje como ontem os passos de meu Pai quando chegava a casa."
Raul Brandão
Do júbilo e da cruz: as voltas dos passos
Acreditamo-nos duradouros porque tivemos infância e família e amigos. Dela retiramos as lembranças, muito do pão que agora comemos. Pergunto a Brandão, o nosso Raul, e atira-me: “O que sei de belo e de útil aprendi-o nesse tempo: o que sei das árvores, da ternura, da dor e do assombro, tudo me vem desse tempo”.
Um farolim, um rio, uma barra, uma rua, várias caras, algumas árvores, cravam-se-nos na carne e não se nos soltam mais.
Esta terra é mágica, eleita.
Concluímos como começámos (passado que, afinal, foi sempre presente), a puxar ómega a alfa, à saudade do que fomos, acreditando na importância enorme do vivido de calção curto.
- Nessora é que era! Lembras-te?
Confirmo, pois da varanda da casa onde nasci e para onde volto, vejo sempre a Mãe a ver quem passa, o Pai, no salão, com seus papéis, a sisuda e sábia avó Rita a perorar polidez, a ingénua avó Marinha sempre com Barcelos na alma e a sua linda história de amor, meus irmãos, protectores e da fidelidade mais pura e transparente, os tios e os primos em lares que foram também nossos.
Das pedras que me fizeram, nos dois montes, o da Luz, o ninho, ao outro, o Monte, na Travessa do Sacramento, em estremas indecididas, alargadas a cada descoberta, do Atlântico e do Douro insubmissos.
Contei pedras na Corguinha, ouvi as fraternas sirenes dos pescadores de Matosinhos a anunciar o fim de ano, em Sobreiras espreitava já a Ribeira da Granja, em futebol de “Champions” no Túnel, no Ringue, no Norte, no Molhe, no Deserto, contra os da Senhora da Luz, os do Paraíso, os de Nevogilde, a atravessar a poça da Praia do Magalhães (da Luz) ou a do Ourigo, façanhas maiores que a da Mancha. A receber dádivas de sável nas linguetas da Cantareira, a ver os irmãos ciganos no Castelo do Queijo – “Xangai”, a Interdita, a fazer de bandeirante pelas matas da Ervilha e da Quinta, a imaginar o comboio em Cadouços, apitando nas Sete Casas e em Gondarém, brincando em ilhas humildes e em largos e floridos jardins de casas apalaçadas, a saltar para o rio no Marégrafo, à sombra do “Visconde de Lançada”, a pescar enguias no Cais Velho, o saudoso, em passeatas domingueiras ao Molhe, a ver moçoilas fulgurantes, a adormecer ao som da ronca, sinfonia inacabada, melhor que Bach, a saudar as névoas mágicas daquela barra – a da morte, mas também a do Farolim, esfinge sémica, pois onde há Foz ele lá está, ele e o Gilreu, minha Austrália, meu brasão, que é por dentro o que é por fora – quero ser penedo!, da intercontinental viagem entre o Monte das Alminhas e o Afoga-Cães, nascente e poente de uma galáxia, a subir a desmesurada Avenida e entrar pelos campos de Aldoar, onde, mais tarde, fui buscar a minha companhia, a Fernanda, aos achados nas ruínas da antiga fábrica de papel, a Carreiros, a calcorrear vielas, a dos Abraços e da Mouteira, e ruas, a do Montebelo, a do Veludo, a da Beneditina, a da Agra, a do Alto do Mato, a do Ribeirinho… que mundo!
O infinito!
E da poesia iniciática passamos, faísca negra, à realidade. O ganha-pão, as responsabilidades, as casas, as obrigações… tudo, quase tudo, bem, pleno de narrativas e também de saudades.
Em espera atravessamos uma vida; em jovens, crendo-nos eternos; em maduros, relevantes. Demos voltas por dentro, das irreflectidas e das meditadas, em divagações entre o afecto, o repentino e a maldade, e com o corpo percorremos estradas finitas, vendo mundo e gentes.
De lá até ao aqui, subimos montanhas, mergulhamos em mares distintos, encontramos o Filipe e a Beatriz, escrevemos, convivemos, topamos novas gentes e amores, árvores enraizadas, trouxemos “souvenirs” de países excêntricos, labutamos em terras afastadas, conhecemos rios e animais díspares, degustamos o inabitual, voamos e navegamos.
Exangues ou nem tanto, revimos o ido e o agora, confundidos e apartados como convém às memórias, falsas de raiz, verdadeiras de fruto, na inevitável vanglória do ser recordado… e ainda vivemos.
Em dia 1 de Fevereiro de 2017, 333 dias antes do fim do mesmo, na Foz, a convite da Bárbara e do Jorge, na Tasca do Bairro, Rua de S. Bartolomeu, plantamos este trecho e esta imagem.
São pobres?
Não alcançamos mais!
Joaquim Pinto da Silva
(Quim Zé)