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No verão de 1986, quando tinha 10 anos, os meus pais insistiram que fosse viver com os meus tios para Lisboa por um mês. Eu não queria ir. Era uma criança acanhada, que não se esforçava por combater a timidez; pelo contrário, acolhia-me nela.
Todas as tardes os meus tios me deixavam em casa com uma empregada para irem passear. Eu ficava atemorizado, com os passos indecisos e um vago frio no estômago, esperando que regressassem ao sol-posto. Assim foi durante vários dias, até que uma tarde eles me levaram também a passear. Ao princípio estava hesitante. Depois, saí com a esperança de encontrar algo que nunca tivesse imaginado.
A avenida resplandecia dos dois lados; era linda, com brilhos coloridos de restaurantes e de cafés, as montras de vidro lançavam toda a sorte de reflexos numa desordem divertida, as mesinhas dos cafés enchiam os passeios; aqui e além, cruzavam-se vozes de outras crianças que andavam de bicicleta. O mundo parecia alegre e eu ambicionava participar daquela felicidade.
Pedi autorização aos tios para ficar no jardim, enquanto eles conversavam na esplanada. Foi-me concedida. Sentei-me num banco verde debaixo de uma robusta árvore. Os outros meninos passavam por mim de bicicleta, mas, se me fitavam, a vergonha voltava: virava o rosto para depois tornar a arriscar, a admirar as bicicletas de sonho.
Não esperava que ninguém me convidasse a andar na sua bicicleta, até que alguém de repente, como por magia, se ofereceu. Era um menino mais novo do que eu, muito bem vestido, de pele muito branca, com as faces ligeiramente rosadas, que, com uma pronúncia desconhecida, se apresentou. A bicicleta parecia ter sido construída pelos próprios anjos. Toda branca, até os pneus, duma brancura de cera. Fiquei fascinado. O sol caía em abundância por entre as árvores, os pássaros murmuravam e, como fios pomposos de água, riscavam o céu. Tudo parecia feito de luz, de um fogo branco, convidativo ao contentamento. Porém, não consegui conquistar o passo seguinte e acolhi-me novamente dentro de mim, recusando o passeio de bicicleta.
Naquele verão de 1986, quando chegara o momento de ser feliz, vi-me incapaz de quebrar as janelas do isolamento.
Logo uma escuridão espessa se formou, aprisionando-me numa tempestade abafada de trovões. Senti-me fraco dentro da minha alma. Tinha as lágrimas nos olhos. Fui-me embora. Os tios ficaram surpreendidos com a minha feição.
Até ao fim da minha estada em Lisboa, nunca mais fui passear.
Hoje, de noite, foi naquele jardim que me encontrei, naquela fração de tempo em que o desejo de felicidade podia ter sido mais forte que o desespero.
Hélio Sequeira