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m'espanto às vezes, outras m'avergonho
Soneto de Sá de Miranda
Uma das tarefas que nos calha a nós emigrantes, é ter de explicar o nosso país de origem aos nativos. Assim que Portugal aparece nas notícias, frequentemente pelos maus motivos, lá nos toca a nós ter que responder a perguntas dos nossos colegas de trabalho e amigos.
Infelizmente por estes dias o flagelo dos fogos faz capas de jornais e é falado na TV, e eu preparei-me mentalmente para contextualizar aos belgas o que se está a passar em Portugal. Na Bélgica a possibilidade de um fogo florestal é tão reduzida que os bombeiros nem estão preparados para esse cenário. Em Portugal, por outro lado, não é Verão sem a festa da aldeia e uns largos milhares de hectares ardidos. Mesmo que nas últimas décadas os fogos têm sido cada vez mais devastadores, arrisco dizer que nenhum português vivo conheceu um Verão sem incêndios.
As causas são múltiplas, desde o clima à geografia e ao mau ordenamento do território, passando pelo envelhecimento da população e o abandono das aldeias. Enfim, não vos vou maçar com o diagnóstico que já todos estamos carecas de saber. O problema é complexo, e de difícil resolução. E por isso mesmo é que ainda andamos nisto, pese embora a tradicional incompetência dos governos e a excepcional capacidade para a asneira demonstrada pelo PS actualmente. Como em Portugal temos mais inclinação para nos queixarmos dos problemas do em resolvê-los, a Natureza faz por nós. Como bem disse recentemente o presidente do Instituto de Meteorologia, “o que os homens não conseguirem resolver, resolve o fogo”.
Mas como explicar isto aos meus colegas belgas ? Não que a Bélgica seja um modelo de organização, mas mesmo assim como explicar a disparidade entre Portugal e o resto do sul da Europa ? Afinal, entre 2015 e 2020, e mesmo descontando a tragédia o Pedrógão Pequeno, arde em média muito mais terreno em Portugal do que, por exemplo, em Espanha.
Aqui chegados, é necessário voltar atrás no tempo, até à minha infância numa aldeia perto de Pombal. Visto que sou um jovem de 43 anos, por isso não é preciso andar muito para trás, basta irmos ao final da década de 80, início dos anos 90. As festas da minha aldeia, do que me lembro, nesta altura contavam sempre com duas ou mais noites com fogo de artifício e, claro alvorada e foguetes durante a procissão. Como não podia deixar de ser, volta e meia lá caia um foguete no meio do pinhal e os bombeiros lá tinham com que se entreter durante um par de horas. Lembro-me em particular de um dia em que ardeu um pinhal, graças a um foguete, numa encosta mesmo ao lado a igreja. Os bombeiros não tiveram mãos a medir e o espetáculo das chamas ficou-me gravado na memória. Mas deve ter sido só a mim, porque nos anos seguintes continuaram a mandar foguetes exactamente no mesmo sítio. Volta e meia o terreno lá ardia, até que o dono (emigrante em França) decidiu construir uma casa e a brincadeira acabou.
Houve quem acusasse o dono de não limpar o terreno, e por isso se punha a jeito para os fogos. Sendo verdade, também temos de admitir que depois de um ano a trabalhar nas obras em França, a quem é que lhe apetece fazer férias a roçar mato ? Eu por exemplo, nunca o fiz, embora em garoto cheguei a ir com os meus tios buscar carradas de mato, caruma e tojo, ao pinhal no tractor do meu avô. Mas só porque ele o utilizava como pavimento para o pátio, quando quase ninguém mais o fazia na aldeia. Contam-me que antigamente, nos 50, 60 e 70, os caminhos e ruas da aldeia eram “calcetadas” com o mato que a malta ia roçar aos pinhais. E que por essa época, a riqueza de um homem media-se também pelas carradas de mato que ele espalhava pelas ruas da aldeia.
Hoje claro, está tudo alcatroado e ninguém se dá ao trabalho de ir roçar mato. E verdade seja dita, mesmo que eu quisesse não saberia onde o fazer. Se quando era garoto ainda conhecia alguns dos terrenos que pertenciam aos meus avôs, 30 anos mais tarde, feitas as partilhas e com compras, vendas e trocas, não sei quais os terrenos que fazem a minha potencial herança. No ano antes de me casar, os meus pais ainda fizeram a visita guiada a mim e à minha esposa pelos pinhais e vinhas que lhes pertenciam. Esqueci-me de quase tudo, e se me pusessem as escrituras dos terrenos à frente, provavelmente não saberia localizar nenhum deles.
E porque é que havia tanto pinhal ali na zona ? A resposta cabe numa palavra, Socer, a fábrica da resina. Embora eu já tenha apanhado os anos de declínio, a resina nos anos 80 ainda era uma importante fonte de receitas das populações locais. E de alvos para as fisgas da garotada da altura que não tinha mais nada com que se ocupar. Íamos pelos pinhais adentro e quando víamos os potes de resina, fazia-se um concurso de tiro ao alvo. Os meus pais não acharam piada à brincadeira e explicaram-me que era do meu interesse não voltar a repeti-la. Hoje o difícil seria a minha filha encontrar os potes de resina, visto que a Socer fechou há já alguns anos e hoje o terreno é uma urbanização. Por alguns momentos, nos anos 90 tentou-se o eucalipto para fornecer as fábricas de celulose da zona da Figueira da Foz, mas foi sol de pouca dura.
Uma outra lembrança destes tempos, é a presença de oliveiras no meio do pinhal. Lembro-me de perguntar ao meu avô que estava uma oliveira a fazer no meio do pinhal. Alguém lá ia apanhar a azeitona ? Foi então que ele me explicou que no tempo do pai dele, inícios de 1900, aqueles terrenos eram baldios e a câmara municipal distribuiu lotes pelas cabeças de casal da aldeia. E nesses tempos, cultivou-se lá milho, feijão e oliveira. Meio século passado, os filhos emigraram para França e faltou a mão-de-obra para cultivar os terrenos e instalou-se a Socer em Pombal. Juntou-se a fome à vontade comer, e plantaram-se os pinhais que hoje ardem e causa tanta aflição a quem vive lá perto.
Temos portanto, no microcosmo da minha aldeia, todo retrato das causas humanas dos incêndios. Mudança do perfil e ocupação da população, inicialmente toda a gente a depender do que a terra dava, mais tarde os pinhais proporcionam com um investimento estável com menos esforço, e hoje um abandono total dos terrenos. É possível fazer melhor ? É, com certeza mas não sem sacrifício e conflito com as populações que ainda persistem pelas serranias que ardem ano sim, ano também. E se há coisa que os governos, este em particular, não quer é o jornal da TVI abrir com velhotes a gritar com o governo. Prefere que ele abra com os velhotes a chorar com uma destruição pelo fogo de uma vida de trabalho.