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Chama-se Ana. Era jovem quando a vida lhe mostrou que teria que lidar com pedras pelo caminho, saber tropeçar sem cair, para no fim construir um castelo. Como muitos portugueses pelo mundo, lançou-se cedo por terras desconhecidas em busca de melhores condições de vida. Confessa que o primeiro ano passado fora do seu pequeno Portugalinho não foi fácil porque não conhecia ninguém, faltava-lhe apoio, esperando apenas que a sorte e Deus não a deixassem ficar mal.
Recorda com algum espanto os tempos em que criticava as suas amigas por emigrarem, ao dizer“ Vais lá para fora lavar sanitas? Para isso ficas em Portugal!”, assim como considerava que um verdadeiro português não podia abandonar o seu país. Efetivamente, quando Camões afirmava “mudam-se os tempos, mudam-se as vontades” não se enganou. Ana começou a olhar para a Bélgica - o seu atual lar - como uma oportunidade para se libertar. A repressão familiar que viveu em Portugal não lhe permitia mostrar ao mundo o seu verdadeiro eu, facto que ainda hoje aborda com alguma revolta.
“Na Bélgica consigo ser eu mesma: a Ana.”
Foi em terras belgas que descobriu que afinal o amor existe e pode ser vivido de forma saudável. Esta união resultou em duas filhas, que garante serem a sua alegria e motivação perante a vida. Não obstante, encontrou na pequena comunidade portuguesa onde vive, um projeto de futuro, uma forma de intervir socialmente. Nas suas palavras, embora os portugueses estivessem próximos fisicamente, existia uma grande distância emocional. Faltava uma força, um lugar que os unisse e os fizesse sentir-se como comunidade. Perante esta fragmentação, Ana e o marido com a ajuda de um casal amigo decidiram numa primeira fase, unir pela fé, fazendo um pedido para que viesse de Portugal uma Nossa Senhora de Fátima para colocar na igreja Onze Lieve Vrow Waver.
Localizada entre Bruxelas e Antuérpia, tinha por objetivo reunir os portugueses em torno de uma figura tão acarinhada e venerada por todos, tendo o seu ponto alto no dia 14 de maio, em que as esperanças se renovam com mais intensidade. Não satisfeitos, os quatro mosqueteiros quiseram ir mais longe e decidiram formar uma Associação de Emigrantes na Bélgica, com sede no salão paroquial, onde pudessem organizar eventos e reavivar a chama lusitana. Esta viria a tornar-se a segunda casa dos portugueses, onde podem conviver entre iguais, começando por juntar 50 pessoas e como “palavra puxa palavra” conta, atualmente, com mais de 400 assíduas.
São celebrações como o “Dia dos namorados”, no dia 14 de fevereiro, o São Martinho, no dia 11 de novembro, ou a “Noite Branca”, no dia 25 do mesmo mês, que se pode esperar boa disposição, boa gastronomia portuguesa, música para alegrar os ouvidos e um ambiente familiar tão nosso característico.
Recorda, com alguma emoção, uma história que lhe chegou num dos dias mais chuvosos de que tem memória. Estava em casa e bateram-lhe à porta. Quando abriu, foi surpreendida por um casal completamente encharcado com uma bebé ao colo, o que a fez convidá-los a entrar e oferecer-lhes umas toalhas para se secarem.
São emigrantes que se deixam seduzir pelas promessas de “um lobo em pele de cordeiro”, acabando por ficar à mercê da sorte.
Começaram por explicar que eram emigrantes portugueses, tinham um trabalho sem garantias de futuro, dormiam num barraco cedido pela patroa com fracas condições e que tinham sido despedidos. Com uma mão à frente e outra atrás, sem saber como dar um rumo à sua vida e da filha, com o desespero no olhar, deixaram a Ana sem pregar olho nessa noite. Quando acordou sentiu que tinha de ajudar aquela família desamparada. E reuniu os maiores esforços para os poder ajudar - desde dinheiro, roupa, um teto para viver e um emprego que lhes permitisse ter estabilidade financeira.
Com esforço e dedicação, Ana conseguiu devolver o sorriso a esta família e dar-lhes um final feliz.
Confessa que a melhor retribuição quando praticamos o bem é sentir que fizemos o que está correto, vamos dormir com a consciência limpa, e quando acordamos podemos ir para a rua de cabeça erguida.
Acredita, também, que o “caminho faz-se caminhando” e que, passo a passo, levará a sua associação aos ecos do mundo. Sem esforço nada se consegue, é certo! Ambiciona ter um espaço autónomo, onde o convívio seja diário, as festas tenham um caráter mais regular, e onde possa contratar uma professora de português para que as novas gerações não percam as suas raízes. E embora reconheça que tem dotes para a cozinha, sonha trazer o Quim Barreiros a uma das festas para mostrar afinal de contas quem é “O Mestre da culinária” do seu país.
No fundo, quer que o seu Portugalinho se faça sentir na sua comunidade, onde todos se possam sentir felizes e integrados. Com apenas um ano de associação, sente que já teve algumas conquistas e que o melhor ainda está para vir.
“Já não regresso a Portugal! Para quê? A Bélgica deu-me tudo”
A Bélgica fê-la ver que o nosso verdadeiro lugar é onde nos sentimos felizes e nos permitem que o sejamos. Conseguiu vingar a personalidade com sucesso, fazer pelos outros o que gostaria que tivessem feito consigo quando era uma jovem e precisava de uma mão e uma palavra de conforto. Tem por objetivo último praticar o bem e recriar um mundo português. Afinal de contas, qualquer um de nós pode dar um pouco de si aos outros, mas existem pessoas que dão os dez dedos, os dois braços, as pernas e o coração.
Quantas Anas serão necessárias para tornar o mundo melhor? Talvez uma. Na verdade, o importante é começar.
Feliz Natal!