Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor!
Muitas coisas não ousamos empreender por parecerem difíceis;
são difíceis porque não ousamos empreendê-las.
Séneca, Cartas a um Estóico
Em Agosto, o Tribunal Constitucional voltou a anular a legitimidade da última convenção do partido Chega. André Ventura, no estilo calmo e ponderado que nunca o caracterizou, desabafou que o Chega é alvo da "maior perseguição a um partido político de que há memória desde o 25 de Abril". Como já é característico do líder do Chega, está redondamente errado. Ou então tem uma memória de peixinho.
Nos anos quentes da revolução, a Assembleia da República foi cercada, sedes do PCP foram queimadas, o Otelo assinava mandatos de captura em branco, não poucos militares torturavam a torto e a direito. Todos os partidos políticos estiveram em risco, e a democracia continuou periclitante até meados dos anos 80 com o terrorismo das FP-25. Que lembre-se, só queria acabar com a democracia, partidos incluídos.
Comparando com estes tempos, as queixas em tribunal, feitas pelos próprios membros do Chega, são a democracia a funcionar. Porque uma democracia não se resume a eleições livres e concorridas, é também o respeito pelas regras e a resolução pacífica de conflitos. Se a coisa se resumisse só a eleições, o Estado Novo teria sido uma democracia exemplar e o Putin é um democrata sem mácula.
É exatamente o respeito pelas regras a parte que o Chega desrespeita, e isso tem consequências graves. A mais recente é a possibilidade, talvez remota, de vir a ser impedido de participar nas eleições regionais da Madeira. Neste caso a queixa vem de um outro partido, o ADN, com o argumento de que a lista proposta pelo Chega foi decidida por órgãos que não têm legitimidade visto que a convenção em que foram eleitos foi anulada. No entanto, note-se que neste caso tudo começou com uma queixa de um militante do Chega à Comissão Nacional de Eleições. Não são apenas os outros partidos a tentar ganhar na secretaria, os próprios militantes do Chega discordam das decisões que vêm sendo tomadas por André Ventura.
Mas mais importante, o imbróglio em que o Chega está metido, ilustra bem um dos problemas do nosso sistema eleitoral. Exceptuando as autarquias e a Presidência da República, só os partidos podem ir a eleições. Ou dito de outra forma, os principais centros de poder e decisão em Portugal, os governos nacional e regionais, são coutada privada dos partidos políticos. Os eleitores podem escolher livremente, mas só entre as listas previamente decididas pelos partidos. O busílis da questão está claro, na forma como os partidos cozinham internamente as listas.
No excelente livro "Os Predadores", o jornalista Vítor Matos descreve como as eleições internas nos PS e o PSD estão de tal forma viciadas, que a legitimidade dos resultados é no mínimo questionável. O que não espanta ninguém com dois dedos de testa. Os actos eleitorais internos dos partidos não são verificados por entidades externas, e no caso dos PS com e sem D existem muitos tachos por distribuir. Junta-se a fome à vontade de comer, e temos o caldo perfeito para abusos e trapaças. Se o caso do Chega é extremo, com os próprios militantes a clamarem falta para cartão vermelho, os dois maiores partidos portugueses também não são modelos para ninguém. Não estranha portanto a abstenção seja tão elevada.
Como sair daqui? Uma forma possível seria, claro, abrir a porta a que os cidadãos também possam concorrer às assembleias nacional e regionais. Seria também necessário termos círculos uninominais, ou de compensação como já existe nos Açores, mas alarga a escolha e incentiva os cidadãos a serem mais participativos. A concorrência é regra geral, uma coisa boa, e não consigo perceber como é que fazendo o contrário, limitando a escolha no boletim de voto seria algo bom para a democracia.
Pode-se argumentar que estaríamos a abrir a porta a populistas, ou pior que apenas os famosos tivessem hipótese de ser eleitos. Por exemplo, corríamos o risco de ver a Cristina Ferreira ou o Ronaldo eleitos para deputados. Pessoalmente, confesso que dificilmente algum dos dois teria o meu voto. Mas não consigo perceber qual o problema de permitir que se apresentassem individualmente a eleições. Se é o medo de populistas e demagogos, lamento mas já vamos tarde. A começar pelo Chega, passando pelo Bloco de Esquerda e terminando no PS de António Costa, há já muito que os demagogos têm lugar cativo na Assembleia da República.
Pelo contrário, uma democracia que limita as escolhas para não ter que lidar com populistas é por definição incompleta, e a prazo condenada a desaparecer.