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Cresci entre duas famílias muito diferentes, o que me moldou a personalidade e fez de mim o que sou: uma pessoa sem amarras, extremamente tolerante e aberta a todos os cultos e razões.
Não era nada politizada e lembro-me de que o primeiro contacto com estudos políticos foi no liceu com o professor Vladimiro Castilho, na altura estudante de Direito em Coimbra. Não me despertou interesse nenhum saber a composição do Governo e da Assembleia de República. Devia ter ficado atenta aos sinais e não enveredar pelo Direito, já que nunca me entusiasmou e o fiz quase como uma penitência. Felizmente a “escrita” resgatou-me!
Mas voltando aos prenúncios do 25 de Abril, ouvia, muito pequena, em Cortinhas, na família Teixeira de Queiroz, piadas sobre o facto de o Salazar ter caído da cadeira. Podia ser outra individualidade qualquer, mas alguém ter caído de uma cadeira e morrer foi memorável. O meu avô Paulo era anti-salazarista ferrenho - o que só abona a seu favor. Também ouvia entre conversas soltas, ou ouvidos soltos, que o professor Marcelo Caetano (casado com uma tia) era um bom professor de Direito mas não um político. Na televisão havia aqueles programas em que ele falava das “vacas magras” e também me passavam ao largo.
Na minha família paterna, Barros Pinto, era o contrário: o meu avô Mário era um defensor do antigo regime e salazarista convicto. Que eu me lembre não se falava de política em casa e só mais tarde, após o dia D vim a ouvir conversas: reuniões da direita em Espanha, sussurros, a minha avó Aninhas muito preocupada. Então as dissidências começaram à mesa, entre pai e filhos.
Ouvi, com grande interesse e emoção que o meu tio Artur, então em Coimbra a estudar Direito, teve de fugir e saltar por uma janela, ao ser apanhado numa reunião subversiva, isto em maio de 69, no seguimento do Maio de 68 em Paris, que seguia avidamente – como tudo na vida - pela revista O Século Ilustrado, que se recebia na casa do meu avô Barros Pinto.
O meu tio Artur tinha um conjunto, os Plátanos e cantávamos músicas revolucionárias do Zeca Afonso (sem que disso tivesse consciência). De uma vez levou-me a um ensaio, numa casa arruinada que já não existe, dos Vaz Guedes, eu era mínima e senti-me importantíssima.
Mesmo assim nunca me senti “dentro” do espírito, nunca fui atraída para a política activa, ou para a militância. Tive sempre um espírito livre e receptivo mais a causas sociais do que ao espartilhamento partidário. Acho que sempre fui uma “anarquista social”, se é que isso significa alguma coisa.
Claro que imbuída do espírito revolucionário a que não podia ficar alheia, oferecia ao meu pai, nos anos, livros da extrema-esquerda: Mao Tse Tung e todos os revolucionários de quem se falava (na minha casa ofereciam-se sempre livros). Não que percebesse porquê, mas era assim, a livraria do sr. Manuel do Lima e a de baixo, do Zé do Lima, tinham um largo manancial deste género literário nas montras. O meu pai olhava pouco entusiasmado ou até desconsolado para os livros, mas não dizia nada.
A minha primeira escolha partidária foi o partido com a sigla mais comprida: FEC-ML, ou seja, Frente Eleitoralista Comunista Marxista Leninista. Olé! Eu e as minhas amigas. Passado um mês (ou uns dias) mudámos para o CDS (veja-se a coerência!), onde permaneci até à morte de Lucas Pires. Depois, deixei-me de partidos.
Nos Arcos não vivemos a intensidade com que se viveu a política nas grandes cidades, ou eu não a vivi, pois se calhar a minha reacção seria a mesma.
No liceu lembro-me das RGAs – Reunião Geral de Alunos, onde praticamente nunca estive presente. Não fiz parte de agressões a professores ou a “saneamentos do director”, não estava na minha natureza, live and let live, fui sempre fiel ao princípio “vive e deixa viver”. Lembro-me de andar cheia de auto-colantes do CDS da cabeça aos pés, até na testa, e de o meu pai dizer que não saía comigo à rua assim!
Lembro-me de ver a sede do partido comunista a arder, no “verão quente” de 75, instalada de palanque na esplanada da Deusa, mas sinceramente, nenhuma emoção “ardeu” dentro de mim.
À parte as minhas memórias factuais, toda a vida mudou no nosso pequeno burgo. Começaram a chegar os “retornados” das colónias, começou a chegar a droga e o MFA. Havia helicópteros e jovens a fazer o “serviço cívico” nas aldeias. Havia um movimento e uma excitação latentes na vila. Chegaram médicos barbudos que passavam as tardes no Galerias a fazer conversa com as meninas do liceu.
A minha vida pouco mudou. Devia ser uma privilegiada pois tudo continuou na mesma, as minhas causas, as sociais, o interesse pela justiça e bem-estar do próximo foram os valores com que cresci e me continuei a interessar. Tenho a certeza de que sou uma revolucionária – sempre fui -, mas pela cidadania e causas sociais, repito!
Lembro-me de ver passar as manifestações, onde também não participei.
Não precisei de partidos para singrar na vida, uns anos mais tarde vim para a faculdade de Direito em Lisboa onde já tudo estava normalizado, onde o ambiente era austero e nada revolucionário, e a exigência ilimitada. Esse foi o primeiro grande confronto da minha vida, o meu 25 de Abril: sair de casa e ingressar num mundo frio e hostil de que nunca mais me livrei – até hoje!
25 de Abril de 2013