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Terminei o dia a jantar com os meus pais. Embora esteja a viver sozinha, faço questão de estar com eles na refeição última do dia. Hoje abrimos, como em muitos muitos fins de tarde, um vinho branco, o cálice preferido da minha mãe, e a conversa deles discorria nesta tarde cavernosa, entediante, sobre as saudades que tinham de ir ao Porto, o destino de eleição, e que de uns tempos para se cá se tornou indisponível devido ao cenário pandémico que atravessamos.
Inspirada pelas conversas livre dos meus ‘cotas’, coloquei música. Escolhi Rui Veloso, que os faz vibrar e sobretudo viajar até ao norte. Pareceu-me apropriado até porque cresci com os cd’s desta referência musical no carro. Entre um trago de vinho e outro, tal como no Porto, iam falando, rindo e evocando memórias longínquas. Tempos em que eu não era nascida nem tão pouco o meu irmão. Riam sobre as aventuras corriqueiras nortenhas e até de uma escapadinha ou outra na ilha. De momentos pequenos e tão grandes ao mesmo tempo! A minha mãe contava, com muito amor, sobre os tempos em que o meu pai a vinha buscar para passearem. “O teu pai tinha uma mão no volante e a outra estava enroscada na minha”.
Olhei para eles, e imaginei e imagino, à luz dos meus 28 anos, no alto da minha tímida e lenta maturidade, o caminho, ou o melhor, o deserto que atravessaram os dois juntos para criar uma família. E lá está: de mão dada pelas agruras da vida. São estes momentos translúcidos do meu dia, em que tenho noção de onde venho, quem sou e para onde vou. Ao mesmo tempo não tenho certeza nenhuma, mas sei que vou sempre partir de um lugar de amor. Aliás foi desse lugar onde nasci.
Percebo isso nas memórias dos meus pais, de como a parentalidade os transformou para melhor e de onde também eu um dia espero estar. Sentada. Com o olhar sobre as minhas crias idêntico ao que os meus pais sempre emanaram: de liberdade, de espaço e de respeito.
Nesses breves instantes, em que o sol de fim do dia entra pela cozinha, deixo-me levar pela gratidão de poder aproveitar os meus pais, já numa fase madura, onde podemos beber um copo e debater a vida, sem filtros. Também entre um copo e outro, no reflexo do dia a terminar naquela pequena mas acolhedora - e tão nossa - cozinha, eu penso na sorte que tenho de brotar daqui.
Entendo de onde vem a minha vontade de comer o mundo, com casca e tudo.. da minha mãe, mulher de armas, que vai para à frente e a quem nem um cancro assusta. Aliás, acho que o cancro é que teve medo dela e foi embora. Ali não havia terreno fértil para crescer. Mas entendo ainda esta minha vontade de contemplar o céu e a lua com calma, de usufruir de uma paisagem, ou de uma estrada com cheiros... vem do meu pai, pessoa a quem reconheço grande sensibilidade e atenção aos pormenores.
E nesta mescla eu morro e renasço no ritmo lento desta terra. Madeira. Ilha que me descobre e confessa a cada passo quem sou. Que sorte tenho de poder aproveitar estes momentos, com saúde, com quem mais me ama, porque na verdade é tudo tão passageiro que me faz sentir que a vida não é muito mais do que isto. E já é tanto! E sou tão sortuda.