Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor!
A baixa de Câmara de Lobos estava com uma energia mágica naquele sábado que adivinhava a chegada da Primavera, época de florescer. Estava na companhia de um grande amigo, junto ao mar, e pedíamos em silêncio horas emprestadas à noite para continuar a viajar pelo prazer de conversar sobre tudo e nada.
Fomos interpelados por um local, que estava sozinho, e como tal fazia-se acompanhar pela noite. Tinha cerca de 30 anos e estava perdido na caminhada pelo seu abismo interior, era visível pelo seu olhar distante, baço e sem esperança.
Olhou-nos enquanto conversávamos e perguntou, sem delongas ou reservas:
- “Amam Deus?”
Confesso que fiquei atónita com a simplicidade desta questão inesperada e desconcertante. Como gosto de filosofar, seja com quem for, pois no fundo somos todos o mesmo, respondi:
- Depende do que chamas Deus.
Ele olhou-me com calma, parecia conseguir ver-me por dentro e disse, com uma precisão jornalística incrível, com aquele sotaque tão carismático de Câmara de Lobos:
- A resposta é muito simples. É sim ou não.
Eu fiquei em silêncio e depois respondi assertivamente:
-Sim amo, uma vez que acredito que todos somos Deus. Há uma partícula divina dentro de todos nós.
Ele anuiu. Ficou por momentos sem fala e tinha os olhos marejados, cansados de uma vida solitária, absurda. Parecia que a sua interioridade era como uma cave fechada, sem portas e sem janelas, com pó a acumular por todos os lados. Quando o olhava, via que os estores da sua alma estavam com uma avaria e não era possível abri-los para deixar entrar a luz. Entrava somente o escuro denso da noite. Vivia por isso às escuras. Mas a culpa não era dele. Não tinha simplesmente recebido a luz do amor.
Pensou que nos estava a incomodar e uns momentos depois disse que nos ia deixar a sós.
Eu respondi que não nos incomodava de todo, que se podia sentar ao nosso lado e continuar a conversar. Rapidamente, com a intimidade que só se tem com estranhos, confessou-nos o seu abismo.
Às vezes as pessoas só precisam de ser ouvidas, pensava eu, enquanto o escutava.
Com 30 anos sentia-se sozinho no mundo. Não teve uma família que olhasse por ele, já era pai, mas sem contacto com a sua filha, algo que dilacerava o seu coração. Disse-nos ainda que já tinha sido preso.
Nós ficámos a ouvir. O meu amigo disse-lhe:
“Não somos assim tão diferentes de ti. Temos idades semelhantes e também nos sentimos sozinhos nos nossos abismos”.
Ele acabou por dizer que se sentia diferente de nós. Não tinha estudos, já tinha estado na prisão e lidava com sombras que deixam marcas indeléveis na vida.
Ainda assim, nada disso nos afastou daquela alma. Queríamos apenas que conseguisse ver-se com os olhos de compaixão que o víamos. Que entendesse que o caminho que trilhou foi uma consequência do meio de onde veio, provavelmente sem amor, com violência e com escassez de tudo quanto o Homem precisa.
No decorrer daquela longa noite, senti que ele conseguiu, pelo menos, começar a arranjar os estores da alma. No final deste encontro, com dois estranhos que de alguma forma lhe transmitiram uma esperança sem cortinas, começou a deixar que alguma luz o invadisse.
Não sei se hoje vive na claridade ou se ainda fecha os olhos como quando acordamos e a luz fere a vista, e preferimos o escuro.
Sei apenas que todos nós precisamos, de vez em quando, de alguém que nos lembre de abrir os estores da alma.