
Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor!
Ele já era rua. Um lugar comum. Era no início da avenida Louise, entre as campainhas dos elétricos e o frenesim do comércio de luxo, onde fazia a sua casa. Desde junho, quando parte da nossa liberdade foi restituída, aquele espaço na avenida passou a ser seu. Durante os meses seguintes, assumi um estranho sentimento de normalidade ao vê-lo ali, estático, imóvel, como se alguém tivesse colocado um novo adereço na movimentada rua de Bruxelas.
De manhã, bem cedo, já lá estava: sentado em cima da sua mochila, com o seu copo de papel na mão, apontando na direção de quem passa. Ora para a esquerda, ora para a direita. Sempre com a esperança de que alguém o conseguisse ouvir. E ali ficava, até o dia terminar.
O que devia inquietar-me tornara-se um hábito. Uma normalidade cheia de filtros, que nos ajuda a ignorar o que está para lá do nosso olhar. Bonjour, chef, dizia-me todos os dias.
Mais tarde soube que era búlgaro. Veio de um país em que o ordenado mínimo anda a volta dos 300 euros. Estava há cerca de um ano em Bruxelas, para onde veio à procura de uma vida melhor, na outra parte da desequilibrada balança europeia.
Trabalhava na construção civil, calculo que sem contrato. Com a pandemia, foi dos primeiros a ser deixado cair pela empresa. Sem dinheiro para manter o quarto onde morava e sem conseguir voltar para a Bulgária, a rua passou a ser a solução do seu problema.
Depois do confinamento, a desigualdade aumentou em todos os países da União Europeia. Para além do impacto económico, o vírus veio a expor as fragilidades dos sistemas sociais e a reforçar as desigualdades. Muitos dos que se encontravam no limiar da pobreza caíram. Ele foi apenas uma dessas pessoas a quem o vírus tirou mais do que o trabalho.
“Um homem da minha idade, quase nos 40, a mendigar na rua. Nunca pensei chegar a este ponto na minha vida”.
O vírus tirou-nos parte da nossa humanidade. Entre o início e o fim do confinamento, entre o tirar e o voltar a colocar a máscara, quando é que parámos de ser humanos?
Por mais que nos confundam, o Homem é mais do que aquilo que veste. É mais do que a posição social que ocupa. E é também mais do que aquilo que diz – se bem que há sempre quem nos consiga enganar.
Certo dia, algures numa hora perdida no início deste mês de setembro, ele já lá não estava. Uma semana antes tinha-me dito que lhe faltava pouco dinheiro para fazer a viagem de comboio até Genebra. Disseram-lhe que poderia encontrar um trabalho lá. Tinha esperança.
Espero que tenha conseguido. Que esteja em Genebra, com quem lhe ajude a suportar o peso que é viver. Com quem lhe ajude a recomeçar. Porque é isso que muitos dos que se encontram nesta situação precisam: de uma oportunidade para um novo começo.
Até à próxima, chef. Courage.