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45 minutos, mais coisa menos coisa, foi quanto eu precisei esta semana para sair de casa, ir à comuna fazer o cartão de cidadão belga para mim e para a minha filha e voltar a entrar em casa. E só demorou tanto tempo porque apanhei um bocado de trânsito matinal na ida, caso contrário teria despachado a coisa em menos de meia-hora.
Quem vive na Bélgica, está habituado a que este tipo de burocracias seja rápida e indolor. Já é a terceira comuna onde resido, e o processo foi quase sempre assim. E digo quase sempre, porque uma vez perdi o cartão belga e fui uma chatice. Não para mim, mas para a chefe do serviço da comuna de Ixelles. O novo cartão só é dado contra a entrega do antigo, e como eu o tinha perdido, o funcionário que me atendeu foi chamar a chefe. Pensava eu que ia levar uma descompostura, e afinal foi a que senhora se desfez em desculpas perante mim pelo incómodo, mas eu teria que pedir novamente o cartão, ir à polícia declarar a perda do antigo e esperar mais duas semanas. Uma experiência surreal para mim, que vinha de Portugal habituado a entrar numa repartição portuguesa como a mesma angústia com que um condenado enfrenta o cadafalso.
Já quem vive em Portugal provavelmente pensa que estou a mentir. Afinal, quando é que foi a última vez que uma interação com a burocracia do Estado foi fácil, rápida ou indolor ? A título de exemplo, a última vez que tentei renovar a papelada lusitana da minha filha só precisei de 4 meses e uma viagem de avião. E tive sorte, porque domino a língua, os usos e costumes da burocracia portuguesa. Já quem é estrangeiro e quer fazer ou renovar a documentação em Portugal parece que a única solução é emigrar para outro país. O triste é que nada disto nos espanta, habituados que estamos a ser mal servidos pelo Estado português.
É portanto natural perguntar porque é que assim é, qual é o milagre que explica a diferença entre os dois países ? Eu tenho várias certezas e uma suspeita sobre o assunto. A primeira certeza é que a forma de organização territorial ajuda imenso. Aparte a confusão devida ao uso de duas línguas, a burocracia belga é no seu essencial tratada no município e não pelo Estado central. E como não existe a excentricidade portuguesa das freguesias, na prática os municípios são relativamente pequenos. O que explica eu viver perto dos paços do concelho, e portanto perder menos tempo em viagens para tratar da papelada.
Outra diferença importante são os horários de funcionamento. Da minha experiência, em Portugal os horários de abertura ao público são os mesmos todos os dias da semana. Já na Bélgica, por norma os horários variam consoante o dia da semana. Por exemplo, aqui onde vivo, os serviços da câmara estão abertos à quinta até às 19h30, mas na sexta só se pode ir de manhã. Por comparação, a câmara de Pombal tem o mesmo horário todos os dias, das 9 da manhã até às 16h30 da tarde. Na prática isso significa que não é necessário ir a correr à hora de almoço nem tirar dias de férias para fazer andar a papelada, é possível passar na comuna depois do trabalho
Mais uma pequena diferença, na comuna onde vivo é fortemente aconselhável fazer uma marcação, e o site da comuna é simples e fácil de utilizar. Já me aconteceu ser necessário voltar porque faltava um papel, ou porque o processo é tratado em várias etapas. Mas nunca tive que esperar pela vez. No dia e hora que marquei sou atendido sem mais demoras. Por contraste o ano passado, em Portugal andei atarefado a fazer marcações para ser atendido em tal dia e hora no Registo Civil. Felizmente marquei logo de manhã, porque quando chego, está uma fila enorme de gente para tirar senha e uma funcionária a gritar pelos nomes dos ingénuos que fizeram a marcação. Fosse eu um bocado mais duro de ouvido, não ouvia o meu nome e curtia com umas horas de espera que é por causa das manias.
A obrigatoriedade de fazer marcação apareceu por causa do Covid, mas foi um mal que veio por bem. Para os funcionários da comuna, que conseguem estimar a carga de trabalho que vão ter naquela semana, e para os cidadãos que não precisam de perder horas à espera. É sempre possível aparecer sem marcação, mas sujeito a ter de esperar.
E depois claro, os belgas são forretas e evitam gastar dinheiro em novidades ou futilidades. Não há cá máquinas xpto que tiram a foto, medem a altura e escaneiam as impressões digitais e a assinatura. A foto tipo passe fui eu que fiz numa cabine automática, e o equipamento para scans só o vi disponível num ou dois guichets. E não é preciso mais, porque regra geral a papelada trata-se por marcação e logo é possível planear a utilização do equipamento.
Ou seja, resumindo: serviços descentralizados e fisicamente perto dos cidadãos, horários que lhes facilitam a vida, quase obrigatoriedade da marcação das visitas e processos simples sem modernices. Nada de outro mundo, e ao alcance de Portugal sem necessidade de gastar milhões a implementar. E então porque é que não se implementa ?
Aqui entra a minha suspeita. Nada disto se faz em Portugal porque ninguém abre os noticiários com o anúncio de que vão flexibilizar os horários de abertura das repartições de finanças. Não, o senhor ministro quer antes aparecer na televisão a anunciar que vai gastar milhões em projectos que vão revolucionar a vida dos cidadãos. Ou vir para os jornais com a bazófia de que Portugal é um pioneiro na implementação de serviços públicos digitais. Até pode bem ser verdade, mas também não deixa de ser um facto que a burocracia é muito mais fácil na Bélgica cavernícola do que no Portugal modernaço. Governa-se para as aparências, e não para os cidadãos.