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Confúcio
“O homem superior atribui a culpa a si próprio; o homem comum aos outros”.
O debate em torno da compra de vacinas por parte da Comissão Europeia e a subsequente estratégia de vacinação tem sido alvo de críticas ferozes. E há quem já tenha vindo em praça pública – provavelmente num gesto pouco refletido e impulsivo – pedir a demissão da Presidente da Comissão Europeia e do Colégio de Comissários.
Lamento, mas não me incluirei no grupo de pessoas que, no meio de uma crise sem precedentes, preferem procurar o soundbite fácil à moderação e ponderação, ignorando – de forma não inocente – contextualizar o debate em que nos situamos. Apontar erros legítimos na gestão da crise é uma coisa; querer entrar numa lógica opinativa permanentemente destrutiva é outra.
A procura sistemática pela externalização da culpa não é de hoje, sobretudo no panorama europeu. No entanto, a tipologia da crise que vivemos hoje tem, necessariamente, de obriga-nos a ser melhores; a ser mais rigorosos.
Para situar o debate, é importante relembrar que as competências europeias em matéria de saúde são poucas, apoiadas num orçamento irrelevante: falamos aqui de aspetos essencialmente ligados à coordenação de algumas matérias referentes à partilha de dados e boas práticas entre Estados Membros; a aprovação de novos medicamentos através da Agência Europeia de Medicamentos (EMA – na sigla inglesa), a monitorização de possíveis crises sanitárias no âmbito do Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças – conhecido pela sigla internacional como ECDC – e o apoio ao financiamento da investigação para novos tratamentos.
Em suma, os Estados Membros, por vontade própria, reservaram para si a esmagadora maioria das competências em matéria de política de saúde. E é preciso sublinhar este aspeto essencial para balizarmos a nossa análise (que parece ser muitas vezes esquecido no debate atual): se a UE não teve, até agora, mais competências nesta área (e tal poderá ser estendido a outras) prende-se à resistência manifestada por vários Estados Membros em avançar nesta matéria.
Pese embora reconhecer esta fragilidade, e antecipando uma corrida internacional desenfreada às vacinas, a Comissão Europeia propôs em junho de 2020 – e muito bem – lançar um programa conjunto de compras, no qual lideraria as negociações com as farmacêuticas, isto, num exercício de coordenação permanente com o “Conselho Diretor” criado para o efeito e em que todos os Estados Membros estariam representados. É importante realçar este aspeto: a negociação das vacinas não foi um exercício solitário da Comissão. Todos os Estados Membros, apesar do que se ouve, foram informados do andamento das negociações e acompanharam de perto a conclusão dos vários contratos com as farmacêuticas. O mesmo se passa com as questões referentes ao método de distribuição/cálculo das doses por Estado.
Não tenhamos dúvidas: apesar dos atrasos nas entregas (circunscrita a uma empresa), o programa democratizou o acesso às vacinas no espaço europeu, evitando que os grandes países tivessem acesso prioritário (pelo seu poder negocial) a milhões de doses. Se assim fosse, os Estados Membros médios, como Portugal, ou mais pequenos correriam o risco de receber as primeiras doses, apenas, no Verão (ou até depois!).
Compreendo que algumas críticas possam ser feitas à forma como alguns aspetos foram geridos, podendo apontar-se o dedo a uma campanha de comunicação desastrosa e a uma certa ingenuidade na elaboração de algumas clausulas contratuais com certas farmacêuticas... Outros referem-se ao processo mais lento de avaliação por parte da EMA. Há que relembrar que ao optar pela autorização condicional de introdução no mercado em vez da autorização de utilização de emergência, a EMA garantiu que a responsabilidade civil em caso de efeitos subversos recai sobre o titular da autorização de introdução no mercado, e não sobre o Estado. Um pequeno detalhe que faz toda diferença. Para além deste aspeto, a autorização condicional obriga as farmacêuticas a respeitar um conjunto de requisitos em matéria de dados, fundamentais para confirmar que os benefícios do medicamento são superiores aos riscos.
É muito frequente assistirmos a debates sobre a Europa em que a questão do “exercício efetivo do poder” não é abordado (por esquecimento, ou por estratégia política). O caso das vacinas é um deles. É preciso relembrar que a UE não é uma federação, mas uma construção sui generis inspirada numa confederação de Estados, onde o diálogo e negociação entre os 27 Estados Membros, a Comissão e o Parlamento é contínuo. E a ambição desta confederação está diretamente ligada à vontade política dos diversos países que nela participam.
Em suma, os sucessos e fracassos da Europa serão – como sempre foram – o espelho da nossa capacidade de trabalhar em conjunto.