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É o fim de um tempo e de uma forma de ver o mundo.
A chocante e inesperada invasão da Ucrânia pela Rússia veio acordar velhos fantasmas que a Europa pensara nunca mais voltar a ver. Quando o mundo estava prestes a ultrapassar a pandemia, a maior crise desde a II Guerra Mundial, eis que uma guerra em solo europeu, com consequências imprevisíveis, veio baralhar o concerto das Nações e os planos das lideranças mundiais. Foi preciso que uma guerra despoletasse às portas da UE para que os líderes, apanhados de surpresa, tomassem consciência da verdadeira situação em que a Europa se encontra, após levar décadas a promover uma espécie de diplomacia da ingenuidade.
Se a crise pandémica veio revelar as terríveis fragilidades e dependência da UE em relação à China em matéria industrial, a crise ucraniana exacerbou de uma forma dura, o resultado do desprezo e desinvestimento no setor da defesa a nossa ultra- dependência em relação aos EUA. Certamente, a eleição de Trump e o seu desprezo pela NATO e UE veio soar os alarmes europeus e relançou o debate acerca da necessidade da Europa repensar o seu lugar no mundo em matéria de defesa, mas não só. O debate previa-se lento, e arrastar-se-ia provavelmente no tempo. No entanto, a crise atual veio alterar o status quo provocando, não apenas uma pequena revolução na forma de agir, empurrando os vários líderes europeus para uma pronta e verdadeira tomada de decisão, rompendo com um comodismo e estagnação fatais. Neste aspeto, note-se que os franceses foram dos primeiros a manifestar uma vontade de mudança na política europeia, e logo após o Brexit.
A eleição de Trump, e a gestão da pandemia empurraram a questão da independência estratégica da UE para o centro das intervenções do Presidente Macron. Em Berlim, a sempre hiper-cautelosa Merkel dava, como sempre foi seu apanágio, sinais pouco claros e reticentes. A sua visão conservadora das relações internacionais, aliada a um certo cinismo na defesa única dos interesses económicos da Alemanha e da doutrina fanática austeritária, comprometeram, como aliás vemos hoje, a capacidade da UE se equipar e preparar-se estrategicamente face ao crescente poder de outros blocos económicos mundiais não-democráticos. A lógica era simples e ingénua: a mera interdependência económica e a globalização dos negócios seriam armas suficientes para travar qualquer tentativa ou desvario imperialista. A realidade veio provar que as teorias nem sempre funcionam, especialmente, quando se está a lidar com ditadores.
Ao seguir uma diplomacia da ingenuidade económica, os líderes ocidentais, não só ajudaram a fortalecer política e economicamente regimes autoritários, como fragilizaram a Europa no seu todo, colocando-a industrialmente dependente de uma China cada vez mais autocrática; energicamente dependente de uma Rússia imperialista patrocinadora de movimentos de extrema-direita anti-europeia e militarmente dos EUA, fragilizados após o descalabro das intervenções no Médio-Oriente. A chamada ordem uni-multipolar acabara por transformar-se numa ordem multipolar, pura e dura, assente em três centros políticos gravitacionais essenciais para a estabilidade e paz: EUA, China e Rússia. Destes três, dois são governados por regimes ditatoriais e autocráticos. A Europa, apenas com o seu soft power e o seu mercado interno pouco peso tem numa arena onde se enfrentam os verdadeiros Golias. Perante tal cenário, a Europa deslumbrada pelas maravilhas e promessas de um ultra-capitalismo mercantilista que ignora todo e quaisquer valores ou regime político, preferiu colocar-se nas mãos de regimes questionáveis, desprezando a sua própria condição, os seus próprios interesses e valores morais, acreditando que a confirmação da teoria da interdependência complexa e da dissuasão seriam suficientes para resolver o resto.
A invasão da Ucrânia veio abanar todas as estruturas. O tom está a mudar e vai ter mesmo de mudar. O discurso que Olaf Scholz proferiu em 27/02/2022 perante o Bundestag assumindo uma mudança radical na posição da Alemanha em matéria de investimento na proteção e defesa da Europa abrem um novo e inesperado capítulo da história alemã e europeia. As recentes medidas tomadas pela UE contra a Rússia e a Bielorrússia, sob a liderança de Von der Leyen indiciam, também elas, uma viragem drástica, mas necessária na forma como a UE encara a sua posição no mundo.
A Europa precisa urgentemente de voltar a rever toda a sua política geoestratégica reforçando o investimento e independência da sua industria, da sua energia, da sua economia e da sua defesa militar. O tempo urge. Perante as ameaças crescentes a nível político, económico, climático, geopolítico e militar a Europa, se quiser sobreviver, defender realmente os seus valores e pesar no seio das relações internacionais, terá de rasgar com a diplomacia da ingenuidade. Para o bem de todos.