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Nos últimos tempos é fácil perceber que o cinema, senão mesmo as artes em geral, têm procurado diferentes maneiras para sobreviver às terríveis consequências económico-financeiras provocadas pela pandemia COVID-19. Mas hoje não estou aqui para vos falar desta transformação e readaptação neste novo e tão exigente contexto, mas de dois ou três filmes que transparecem uma moral importante sobre a principal batalha dos artistas: a liberdade de expressão.
Pensei nisso sobretudo pelos últimos acontecimentos macabros ocorridos na França. Pessoas decapitadas em plena praça pública como ato terrorista assustador e que são alvos inocentes de uma cultura ocidental em que a liberdade de expressão tomou proporções descomunais e passou a ser levada ao extremo. Hoje tudo pode ser dito na esfera pública, seja nas escolas, seja nas redes sociais (por influencers e famosos muitas vezes mal informados) seja na televisão. Mesmo os jornalistas surgem libertos da objetividade inerente à sua profissão e dizem tudo o que lhes vem à cabeça.
Na grande maioria, os indivíduos pós-modernos deixaram de pensar no outro e preferiram ser egoístas e egocêntricos. Pensamos pouco nos efeitos secundários dos nossos comentários e das nossas piadas, utilizando-as para evangelizar os públicos com as nossas tão meticulosas opiniões. Somos demasiado insulares nas nossas convicções. Preferimos magoar as crenças dos demais e as suas sensibilidades em vez de promovermos uma cultura de aceitação heterogénea.
No cinema, um comentário sobre esta sociedade em autêntica crise de valores ficou evidente no mais recente filme “Joker”, realizado por Todd Phillips. Nesta obra vencedora do Óscar de Melhor Ator para Joaquin Phoenix, do Óscar de Melhor Banda-Sonora Original e do Leão de Ouro no Festival de Veneza em 2019, há uma mensagem clara de que é importante cuidar das pessoas doentes em vez de julgá-las ou massacrá-las com comentários maliciosos. No nosso presente, mesmo as personagens ditas mais humanas poderão ser humilhadas pela sociedade. A fragilidade poderá conduzir consequentemente aos devaneios, à loucura e à vontade de destruir a sociedade, agora vista como um parasita. Arthur Fleck é alguém evidentemente massacrado nesta cultura, e responde à letra na criação de uma contracultura: a da violência.
Se recuarmos alguns anos no tempo, mais precisamente a 1974, descobriremos a obra “Lenny”, do sempre excêntrico Bob Fosse. Em vez de um musical com números exuberantes típicos à carreira deste cineasta, a proposta cinematográfica de Fosse vem na mesma linha deste comentário sobre a liberdade de expressão, embora de certo modo num sentido imediatamente oposto: da repressão e da falta de liberdades.
O filme é um drama inspirado em factos verídicos sobre o comediante real Lenny Bruce - a quem Joaquin Phoenix foi buscar alguma influência para o desenvolvimento do seu Joker -, encontrado morto na sua casa em Hollywood Hills, vítima de overdose acidental de drogas. Alguns espectadores atuais conhecem-no como personagem da série “The Amazing Mrs. Maisel” da Amazon Prime Video, mas foi o filme de Fosse que melhor explorou os problemas decorrentes de um comediante controverso nos anos 50 e 60.
Lenny foi julgado e condenado várias vezes pelos Estados Unidos da América, esse seu país que se diz livre e que corrompe aqueles que vão além do politicamente correto, por utilizar a palavra como comentário e proclamação das hipocrisias americanas. Lenny não podia dizer o que dizia, e sofreu com isso (o perdão oficial do Estado veio postumamente). Quem fala de “Lenny” fala também de todo um conjunto de filmes do cinema clássico desde “O Grande Ditador” (1940), de Charles Chaplin à “A Quimera do Riso”, de Preston Sturges (1941). Todos eles procuram explorar a definição das liberdades e das suas sequelas sobre os sujeitos.
Portanto, se por um lado faz-nos mal a excessiva liberdade de pensamento e comentário, também faz mal a falta dela. Temos que procurar um equilíbrio, e é esse o equilíbrio que a sétima arte propõe. Mesmo que não interfira diretamente sobre as nossas atitudes, o cinema ainda nos poderá prevenir, e confrontar-nos com certas questões. Será que continuaremos a preferir julgar e apontar o dedo ao outro pelas suas escolhas sejam elas de ordem religiosa, política, cultural ou sexual? Conseguiremos ser engraçados por muito tempo dessa maneira? Poderemos ter piada? A liberdade de expressão deve ser preservada, mas a par da liberdade de expressão está também o respeito pelo outro. Para ter piada, os artistas precisam de entender que não é preciso magoar, não é mais bem-sucedido, aquele que fere os demais. Se os artistas e alguns filmes mais comerciais de Hollywood (aquelas comédias adolescentes disponíveis na Netflix) continuarem a ser assim, garanto-vos que não terá piada nenhuma.