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Torna-se cada vez mais urgente que saiamos da caverna, onde nos habituamos a visualizar uma realidade que nos convém. Todos juntos, aos pares ou um a um, temos de ter a coragem de, aos poucos, sair. Mas, efetivamente, sair.
Nesta realidade à qual nos acostumamos ninguém nos prende. Não estamos amarrados. Nada nos impede, verdadeiramente, de sair e ver a luz. Nesta realidade, o que nos amarra é “o egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas cobardias do quotidiano”, como disse José Saramago, numa tentativa de explicar a “cegueira mental” com a qual optamos em estar no mundo.
Porquê desta conversa?
Vivemos uma época dificílima em variados níveis. Não estávamos preparados para esta avalanche de mudanças que viraram a nossa vida do avesso, tanto numa escala íntima familiar como numa escala global. Como conviver com um vírus da família dos coronavírus (SARS-CoV-2), responsável pela doença Covid-19, é a resposta que ainda procuramos. Fomos alertados para a possibilidade da ocorrência de surtos zoonóticos ainda antes desta pandemia, dada a forma irresponsável como o ser humano explorava a natureza, mas esta chamada de atenção não caiu na nossa atenção, ficando, portanto, no abstrato da nossa consciência. A nossa relação com a verdade é difícil, especialmente quando ela se encontra ainda distante de nós, no tempo e no espaço.
A questão é que a conjuntura atual se mantém para o futuro, prevendo-se o surgimento de novos surtos zoonóticos em intervalos temporais cada vez mais próximos e com um índice de mortalidade ainda maior. Estamos na fase em que sabemos a gravidade que um vírus deste tipo pode ter nas nossas vidas e ainda a tempo de combater futuras pandemias. Em todos os estudos feitos por especialistas em que tentam encontrar soluções de combate ao aparecimento de futuras zoonoses, um dos pontos principais que nos toca a todos é, sem dúvida, a redução do consumo de carne. A ciência é clara quando afirma que se continuarmos a explorar o meio natural com o mesmo nível de “cegueira mental” que temos feito, agravar-se-á a probabilidade de sermos contaminados por outros vírus do mundo animal.
Assim como o tráfico de animais selvagens para o consumo humano foi o motivo que desencadeou esta epidemia viral, podemos observar outros vírus que também nos continuam a afetar a nós e aos animais, como o novo surto da gripe das aves, recentemente desencadeado na França, que contabilizou com 61 focos de contaminação no fim do mês passado. Como é possível constatar, isto não surge apenas na China, assim como a culpa também não se deve à alimentação “esquisita” dos chineses. A culpa, verdadeira e sem filtros, deve-se à forma como o homem manipula os recursos naturais, mais especificamente, como faz a criação dos animais para fins comerciais.
Somos todos, inquestionavelmente, responsáveis por esta pandemia e seremos pelas próximas que virão. Não tentemos, desta vez, voltar a entrar na caverna, e atirar as culpas aos agricultores e produtores da carne, por não garantirem as condições de saneamento que são essenciais ao bem-estar animal e ao nosso consumo. Façamos um esforço autocrítico de admitirmos que são os nossos hábitos alimentares que, ou por tradição, ou por hábito, ou pela gastronomia do nosso país, colocam um produto animal no nosso prato em todas as refeições. Por conseguinte, a nossa demanda torna-se desproporcional à capacidade de assegurar a saúde e o bem-estar animal, ambiental e, portanto, humano, nesta produção em massa de animais em cativeiro.
Podemos, por breves momentos, combater este otimismo acrítico de que tudo ficará bem? A distância pela qual nos vemos das coisas é o que possibilita ou não a nossa atuação sobre elas.
Nem governos nem Deus nos irão salvar. A solução terá de passar por uma reforma da nossa consciência individual e capacidade autocrítica, senão, qualquer outra solução, como é o caso da vacina, virá na base de remediar um problema que é muito mais profundo, para o qual contribuímos e do qual nos sentimos vítimas. Esta consciência individual não se trata apenas de uma sensibilidade maior para com o que comemos. Alargando os horizontes, podemos refletir na forma como manipulamos artificialmente toda a natureza e a deixamos existir apenas na medida em que serve os nossos interesses.
Numa sociedade em que os velhos hábitos continuam a corromper o meio, pergunto-me de que forma funciona a nossa consciência a nosso favor? E como é que permitimos a substituição do que é real e palpável pelas sombras otimistas projetadas na caverna? Ficamos embriagados com o nosso mundo de significados, que, apesar de parecerem convenientes, não o são, de todo. Porque, se acreditarmos nesse mundo irrealista, mais tarde ou mais cedo, voltaremos, de novo, ao caos social e económico em que agora nos encontramos. É uma questão de tempo.
Só saindo da caverna é que se tornará possível enxergar. O perigo não está em olhar o sol nem as coisas reais. O perigo está, de facto, nos fantasmas da caverna, no nosso mundo de ilusões que não permitem que sejamos a mudança positiva que queremos ver no mundo.