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Buarcos, terra do perímetro urbano da Figueira da Foz, estende‑se por uma encosta que, grosso modo, vai da marginal a um alto onde se encontra um resto de torreão do Castelo de Redondos. A geografia nem sempre anda de braço dado com a fotogenia e com o pitoresco: a povoação não é bonita, nota‑se a falta de plano urbanístico, grande parte das casas é anestética e os revestimentos azulejares chocam por patentearem péssimo critério. Certas cromias criam expetativa, mas logo o olhar pousa numa porta pirosa, num adorno pindérico ou num emaranhado de cabos elétricos. Deparei com gente que a vida assilvestrou, vi boa pinta em raparigas e em senhoras de meia‑idade, no Café Pierrot gostei do estilo da jovem tatuada que me atendeu. Tendia para o urban chic, mas não chegava a sê‑lo.
O Teatro Trindade, assim chamado em homenagem a Maria da Trindade, a mulher do ricaço que ordenou a construção do imóvel, veste de amarelo e exibe na frontaria ornatos de sopro neomanuelino. Do interior, destaco as duas grandes esculturas do arco do proscénio; não têm significado definitivamente estabelecido, talvez se trate de representações alegóricas. A decoração do teatro, as pessoas que lá encontrei, as fotos que pendem das paredes nos corredores do rés do chão e o tipo de eventos que ali tem lugar (teatro, bailes, matinés dançantes, noites de fado…) fizeram‑me pensar numa combinação — em termos gerais, difícil — de elegância com cariz popular.
No Núcleo Museológico do Mar, apreciei as miniaturas de barcos e os três dóris amarelos, e detestei, no vídeo relativo à pesca do bacalhau, a exploração dos sentimentos e dos carpidos das mulheres que viam filhos e maridos partir para a empresa longínqua. Retenho pormenor que desconhecia: os pescadores apodavam o gadídeo de «peixe tonto» visto que, uma vez apanhado, não tentava libertar‑se.
Pude visitar três monumentos dignos de encómio, que aqui indico por ordem decrescente da minha preferência: a Igreja da Misericórdia, a Capela de Nossa Senhora da Conceição e a Igreja de São Pedro.
A primeira terá sido edificada no século xvɪ e convence pelo seu interior, de nave única revestida de silhar de azulejos. O teto verde, de linhas curvas, está dividido em caixotões. A cabeceira da igreja compreende três capelas pouco profundas, num patamar a que se acede por dois conjuntos de escadas laterais. Na parte de baixo do patamar foi aberto um nicho e colocado um grupo escultórico do século xvɪ, de pedra de Ançã. Atribuído à escola de João de Ruão, representa Cristo no túmulo. Já a estatueta de pedra ançanense em que se reconhece Maria Madalena é obra do próprio mestre francês, assim mo garantiu o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Buarcos, gentil e competente na forma como dirigiu a minha visita. A tribuna dos mesários é o melhor ponto de observação da cabeceira da igreja.
No púlpito, de pedra, o guarda‑corpos leva decoração de pilastras jónicas e de nichos encimados por concheados. O teto da sacristia apresenta formato octogonal e um pormenor interessante: os cantos em leque. Lastimo que, por norma, a Igreja da Misericórdia esteja encerrada e só abra para funerais. Ela é, no meu aviso, o templo do concelho da Figueira da Foz que tem o espaço intestino mais bonito.
A Capela de Nossa Senhora da Conceição, erguida no século xvɪ, é, com propriedade, aquilo que se qualifica de petit bijou. Agradou‑me a conjugação dos lambris azulejares com a talha dourada de três retábulos, um situado no presbitério e os outros nas capelas laterais. Ao retábulo da capela que fica no lado do Evangelho mandou o pároco em exercício — Jorge, de sua graça — acrescentar uma pintura votiva na qual homens do mar cujo barco naufragou agradecem o seu salvamento ao Senhor Jesus dos Pescadores, representado em crucifixo anteposto ao ex‑voto. Outrossim, é credor de alusão o cálice formado pelo púlpito circular, com aligeirado adorno de querubins, e pela coluna em que ele assenta.
Por via de regra, também a Capela de Nossa Senhora da Conceição está fechada ao público. O acesso à nave depende das disponibilidades do padre Jorge e dos garções do Stella Maris, restaurante onde deve ser feito o pedido correspondente. E, verdade seja dita, mesmo carregados de trabalho, eles fazem o possível para que ninguém fique privado da visita.
Quem for à Igreja de São Pedro em busca de boa arte, encontrá‑la‑á no batistério e na Capela de Santa Cruz. No primeiro, tenho em mente o silhar de azulejos e o retábulo seiscentista de talha dourada. Na capela, penso nos azulejos de estilo mudéjar e no pungente altar pétreo, policromo, de João de Ruão, com Lamentação sobre o Cristo morto.
Contérmino à Igreja de São Pedro, o Stella Maris é tocado pelo requinte. Nele ressai a presença da madeira, no teto e na decoração (guarda‑louças, relógio de pé alto…). A lareira, os quadros, os candeeiros e a cortina espessa que separa as duas salas reforçam o caráter tradicional do restaurante. Fui lá três vezes e a única pessoa que destoava da finura era um homem que, depois de refeiçoar, levou um palito à boca. Ora o mantinha estático, ora o movia, com indisfarçável prazer, na comissura labial. Tinha cara bolachuda e a combinação da cena com o cenário criava um pequeno showburlesco. No entanto, tendo em conta a forma como tratava a mulher — dava mostras de delicadeza e conversava com ela —, o pecadilho pouco importava.
O cardápio oferece entradas costumeiras, um rol, fixo e sem surpresas, de 15 pratos, e ainda doces, frutas e gelados. Serve‑se, além disso, o prato do dia, sobre ele recaiu duas vezes a minha escolha. Provei sopa de peixe e sopa de nabiça, ambas espessas e reveladoras de boa mão para a cozinha. Critico apenas o excesso de salsa que retoucava a sopa de peixe. Todos os louvores para a dourada assada, com escolta de batatas e brócolos, e para o bacalhau com broa, que chegou à mesa em montinho onde acertadamente se misturavam dois paladares, o do demersal, servido em lascas, e o do pão de milho. Batatas a murro, azeitona e grelos salteados em azeite e alho completavam a dose.
Classificação satisfatória para o bacalhau à Stella. Com rodelinhas de batata frita e couve‑de‑bruxelas, do forno saiu posta generosa de bacalhau, recheada com presunto e coroada por maionese e por duas gambas gigantes. No fundo da travessa, cebolada com miolo de marisco embebia a base da composição. Notei uma pecha: não se notava o gosto do presunto. A lista de sobremesas é banal. Provei o bolo de bolacha, delicioso, e o pudim de ovos, fresco, mas a carecer de paladar mais intenso.
A carta de vinhos é curta, mas conta com representantes das principais regiões vitivinícolas do país. Não fui ambicioso, bebi um vinho regional alentejano agradável e sem pretensões produzido pela Fundação Eugénio de Almeida (EA, tinto, de 2019), e um tinto do Dão, suave e com aroma de frutos vermelhos (Encosta da Estrela, de 2019).
Os empregados do restaurante são corteses e prestam bom serviço. Quando me preparava para pagar através do multibanco, um deles levou o sufixo «inho» a recinto onde nunca o havia visto: pediu‑me para confirmar o valorzinho e para marcar o codigozinho.
Embora a zona em que cirandei não seja extensa, enxerguei dois pelourinhos, o de Buarcos e o de Redondos, dantanho povoação autónoma relativamente a Buarcos. É legítimo estabelecer uma analogia entre esse torrão e o mundo atual: onde quer que estejamos, sempre estão perto de nós as redes sociais, verdadeiros pelourinhos do tempo presente.