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Pertence ao reino do intangível aquilo que mais me agradou quando estanciei no concelho de Idanha‑a‑Nova: o silêncio, o petricor, a sensação de vista desembaraçada, o gozo do espaço extenso. Tudo valoro por idiossincrasia e por viver numa cidade de bulícios.
Sobrou‑me o tempo que a urbe suga, conversei com os locais. Conheci uma idosa que padece de surdo‑mudez desde que, tinha ela quatro anos, apanhou susto provocado por uma vaca. Bebi cerveja na companhia de José Relvas, lídimo adufeiro, e de um jovem que, para receber a totalidade do salário devido, teve de amedrontar o anterior patrão com ameaça de sova. Ouvi relatos acerca da vida duríssima do camponês que, nos idos do Estado Novo, trabalhava no latifúndio. Numa tertúlia de velhos, ninguém se queixou da interioridade, mas todos denunciaram menoscabos de que eram vítimas os terranteses da vila. Um deles recitou a seguinte quadra: «Ó Idanha, ó Idanha/estás no meio do sobreiral/És mãe dos de fora/e madrasta do natural.»
No que toca ao património, a Capela de Nossa Senhora de Fátima é o meu tesouro favorito. Fica num outeiro do Centro Nacional de Atividades Escutistas e é esquecida nas brochuras turísticas. Inaugurada em 2017, opera belo conchavo entre a natureza e o trabalho humano. Tem risco do gabinete Plano Humano Arquitectos e reflete o universo escutista: obra de madeira e zinco (nos seus afazeres e construções, os escuteiros recorrem amiúde à madeira), sóbria e despojada, presentifica uma tenda e apresenta extremas pontiagudas que evocam o lenço dos escutas.
A capela do Santuário de Nossa Senhora do Almurtão faz‑se de traços simples, tem adro alpendrado e capela‑mor com forro azulejar e retábulo de talha dourada. Guardo frescos na memória o modo como os crentes ali se afervoravam na oração e o ror de meios usados para manifestar gratidão à padroeira, por exemplo, ex‑votos de expressão cândida, adufes, fitas de toda a espécie, um cachecol de clube desportivo, um boné de militar, uma escultura de madeira e vários objetos de cera. Neste santuário, a devoção vive.
Na vila de Idanha‑a‑Nova, não achei causa de deslumbre. Assinalo o Solar dos Marqueses da Graciosa, o Palacete das Palmeiras, a Igreja Matriz e o Centro Cultural Raiano, detenho‑me no alvo da minha preferência, a exposição de miniaturas de Jerónimo Ventura Moura, artesão que já morreu. Utilizando sobretudo madeira, replicou o complexo da Praça da República e produziu uma série de peças alusivas a mesteres, figuras e tradições idanhenses. Na feliz expressão de Sandra, funcionária do Hotel Estrela da Idanha, deu corpo a uma «Idanha dos Pequenitos».
A respeito desse albergue, calha dizer que reúne condições para atrair viajantes e turistas, mas também nómadas digitais. Sofia, a jovem diretora, veio do litoral e radicou‑se no interior. Deixou‑me a impressão do bom exemplo e acredito que, com a sua equipa, trará benefício à terra idanhense.
Na tertúlia acima referida, aprendi que, por terem fama de beber, os habitantes de Ladoeiro receberam o seguinte apodo: «eibebos». Os de Rosmaninhal eram os «chamuscados», pois aí fazia mais calor do que nos outros sítios. E os de Idanha‑a‑Nova eram conhecidos por «alarves»; a avaliar pela sobreabundância das doses no Baroa e no Portão Velho, os meus restaurantes prediletos, fazem jus ao conceito. O primeiro tem serviço excelente, ornato estandardizado e dá relevo à cozinha regional. Entre as iguarias propostas, contavam‑se queixadas de porco no forno, coelho do campo à caçador, caldeirada de javali no caçolo, marreco da quinta no tacho e ensopado de muflão. Provei — e recomendo — as duas primeiras. No que toca ao Portão Velho, o atendimento é razoável e o adorno é rústico, arreigado ao costume e ao artefacto da terra e do país. Comi lá rancho e favas, em doses tão fartas que me serviram de almoço e de jantar. Pelo arreio e pela freguesia, representa bem a vila. No Portão Velho, talvez só tenha visto idanhenses não desvirtuados pela experiência da emigração ou da carreira na grande cidade.