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Na cerimónia de entrega dos Óscares, o comediante Chris Rock fez uma graçola alusiva à cabeça rapada da mulher de Will Smith, Jada Pinkett Smith. Gozou com ela, que sofre de alopecia, causou‑lhe incómodo. O seu marido riu‑se, mas a seguir levantou‑se, subiu ao palco e deu um estalo a Chris Rock. Sentou‑se de novo e disse duas vezes em voz alta: «Keep my wife's name out of your fucking mouth!» Will Smith permaneceu na sala e, após receber o Óscar de melhor ator, recorreu ao chavão — «life imitates art» — e à fauxpology, justificando o seu ato por meio dos desvarios que o amor açula e do propósito de proteger a família. Não se desculpou ante Chris Rock. Depois da gala, Will Smith riu e dançou na festa da Vanity Fair e só noutro dia, através das redes sociais, pediu perdão a Chris Rock. A Academia reagiu com demora e acabou por proibir a presença de Will, ao longo de dez anos, nos eventos que venha a organizar.
Na sequência deste caso, houve quem quisesse debater as balizas do humor. Entendamo‑nos: ninguém as pode definir, ninguém pode fixar as matérias e o teor da declaração jocosa. Há limites à liberdade de expressão e o humorista tem de os respeitar, as fronteiras do humor são as da liberdade de expressão — de resto, ele já é cerceado pela cultura woke e pelos receios que os cancelamentos infundem.
Dito isto, assinalo que o chiste de Chris Rock me pareceu salobro e denunciador de falta de empatia (uma caraterística dos nossos tempos). Considerando os padrões em vigor, sei que a cabeça escalvada é mais problemática para as mulheres do que para os homens e admito que, por ser negra, Jada Pinkett Smith sinta a pressão adicional que força a observar diretrizes estéticas da branquitude. No entanto, à piada de mau gosto não se replica com a agressão física, tipificada como crime na lei penal das comunidades de direito que se prezem. Responde‑se, por exemplo, com silêncio, esgar de repulsa ou piada bem feita. A chufa e a violência corporal são distintas, implicam desvalor diverso.
A Academia contrata comediantes para apresentar a cerimónia de entrega dos Óscares. Eles provocam os atores que ali se encontram e assim multiplicam audiências. Will e Jada deviam estar preparados para a aguilhoadela, Jada não foi o primeiro nem será o último alvo de gracejo na gala em apreço.
Segundo amigos de Chris Rock, este não tinha sequer conhecimento da alopecia de Jada Pinkett Smith. No meu juízo, isso pouco importa. Mesmo que a ignorasse, continuaria a achar infeliz a piadola.
O tabefe de Will Smith foi um reflexo do modo como, em termos societais, construímos e (ainda) concebemos a masculinidade: o galaroz que sai do seu lugar para, consoante lhe incumbe, preservar a honra da mulher, da dama desprovida de ânimo próprio e incapaz de se defender. Eis o valentão que salvaguarda um dos seus bens, a mulher coisificada. Carregando nas tintas, dir‑se‑ia que Jada não existe enquanto pessoa, apenas como consorte de Will Smith. Manteria o discurso independentemente de saber que, em Red Table Talk — o programa que, em conjunto com a sua mãe e a sua filha, Jada apresenta —, Jada Pinkett Smith evidenciou não precisar de anteparos alheios.
A inação da Academia durante a cerimónia e as reações de quem estava na sala e dos que depois sufragaram a bofetada concorreram para normalizar a conduta de Will Smith, para que miúdos e graúdos encarassem o uso da força como jeito legítimo de resposta. Outrossim, propiciam a violência doméstica: se, conforme Will Smith afirmou, o amor levasse a cometer loucuras, então ele também serviria de pretexto para a pancada dentro de casa. Confesso que isto faz soar todas as minhas campainhas. Fui vítima de maus‑tratos caseiros, sou um domestic violence survivor e sei bem como a invocação do amor e do laço de família transforma o pecado da agressão num pecadilho ou mesmo numa prática isenta de censura.
O estalo não foi um testemunho de amor, antes um ato de egolatria.
Nem se diga que houve um bocanho de fraqueza, um gesto impensado de Will Smith, que não cabe falar de machismo ou de atitude patriarcal. Essa objeção, a contrapelo de movimentos como o #MeToo, vulgarizaria o recurso à violência, mostrar‑se‑ia contrária aos valores de uma comunidade esclarecida e juridicamente organizada e, em última instância, aproximaria o ser racional do irracional.
À vista ficaram ainda a hipocrisia da sociedade e do mundo do espetáculo, a sua complacência face ao poder e ao privilégio, que os levam a tratar de maneira diversa o que é igual no âmago. Imagine o leitor que eu, criatura anónima, havia subido àquele palco e batido em Chris Rock. Teria sido retirado da sala e ver‑me‑ia em apuros perante a lei. Num outro registo, suponha que o agressor era branco: logo surgiriam clamores a invocar racismo.