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«É difícil percorrer o fio de uma navalha; tão penoso, dizem os sábios, como o caminho da Salvação.»
Katha-Upanisishad
Houve um tempo em que a tele-visão era educativa. Recordo-me de ver programas muito instrutivos – como o “Cosmos”, de Carl Sagan, um bom comunicador. Só os muito sábios conseguem simplificar o muito que conhecem e torná-lo acessível a pessoas como eu. E C. Sagan era seguramente um ser assim. Ele fez este programa para tv pensando em mentes curiosas como as nossas.
Com ele aprendi toda a pouca astronomia que sei hoje. É dia de Natal e o Sol está um pouco fosco. Recordo-me de um programa em que C. Sagan me deu a conhecer o sistema solar. A câmara, como por magia, afastou-se do sistema solar e o planeta Terra foi diminuindo, diminuindo. Do tamanho de uma laranja, passou a ser só um pontinho do tamanho da cabeça de um alfinete. E depois tornou-se indistinta. Desde então, a imagem dos seres que habitam a Terra alterou-se muito para mim. C. Sagan reduziu-me à minha insignificância. O que são os nossos mesquinhos desejos e egos? O que valem tantas lutas em que nos encarniçamos e damos tudo para defender as nossas propriedades? Bem sei, somos mamíferos… e como mamíferos temos instintos territoriais. Mas os gatos, por exemplo, dizem ao vizinho intrometido que vá dar uma volta, que vá caçar noutro lado e pronto. Definem o seu espaço e as lutas que possam existir acabam quando algum se dá por vencido. O ser humano é o único que tem um cérebro tão desarranjado que pode sentir prazer com o sofrimento do outro. Os outros caçadores, leões, por exemplo, não se divertem a caçar; sabem gerir os seus bens e só apanham na justa medida das suas necessidades. Aquilo que aconteceu há pouco tempo na Herdade da Torre Bela (em que caçadores chacinaram 450 veados, javalis e outros seres, e depois disso se vangloriaram) faz-me pensar que muitos humanos devem ter uma falha na sua estrutura mental que pode causar muito sofrimento a outros. Na mesma linha de raciocínio, o recente atentado no Capitólio só pode ser explicado por demência de quem é mau perdedor.
Um ídolo da minha juventude (John Lennon) foi assassinado por um demente destes. Outro humano excepcional foi Gandhi, também ele, muitos anos antes assassinado por um fanático. Chego à conclusão de que o fanatismo é uma manifestação de desarranjo mental, tanto mais perigosa quanto mais se nega, ou se desconhece. Num sistema democrático cada cabeça vale um voto – por isso se tornou tão importante a educação e o conhecimento. Hoje a humanidade tem poderes letais que já fazem mossa à escala cósmica. As bombas atómicas e termonucleares armazenadas em silos subterrâneos ou nos fundos dos oceanos são o suficiente para destruir várias vezes o planeta. Claro que a matéria não desaparece e passados muitos milhares de anos haverá uma nova configuração da matéria planetária. Mas onde os humanos e seus amigos não terão lugar. De modo que, de novo, a questão candente se coloca: se Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, criou-o como mecanismo autodestrutivo?
Esta pedra em que me sento tem uma história de milhões de anos. Aqui sentado, no dia de Natal, no dia do Nascimento de uma nova era - Cristo pediu ao Pai que perdoasse os seus inimigos - aquela epígrafe dos Katha-Upanisishad, fruto de uma sabedoria tão antiga e anterior aos Evangelhos , e que Somerset Maugham escolheu para abrir o seu romance O Fio da Navalha me parece tão actual.