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Vão fazer em breve vinte anos que eu estava num avião sobre o Atlântico, com destino a Santiago do Chile. Na altura tinha acabado o curso, e tive a oportunidade de fazer um estágio de um ano no Observatório do Sul Europeu. Um puto de vinte e três aninhos, que outras chances teria de ir até ao outro lado do mundo ? E cereja no topo do bolo, iria trabalhar na minha área de estudos numa organização científica mundial. Não pensei duas vezes, e contra os avisos da minha mãe, enfiei dois pares de cuecas na mala e meti-me no avião.
O Chile é, mutatis mutandis, tal e qual Portugal. É certo que existem diferenças, mas para um português é bastante fácil integrar-se no meio das gentes chilenas. Quando aterrei não falava uma palavra de espanhol, convencido que estava tal como muitos portugueses ainda hoje de que bastava dar um sotaque meio espanholado à língua de Camões para me fazer entender. Primeiro embate com a realidade, o espanhol não é um português mal amanhado. Já o sotaque brasileiro parecia dar melhores resultados, e foi assim que os primeiros dias lá me fui desenrascando falando à Sinhozinho Malta.
Acabei por passar ano e meio no Chile, e aproveitei para calcorrear o país de norte a sul, só me faltou conhecer a Terra do Fogo. E neste tempo todo deu para perceber algumas das diferenças entre Portugal e o Chile. Uma que me estranhou a mim e a todos os estrangeiros com quem trabalhava, os chilenos celebram as suas derrotas militares. Enquanto que em Portugal construímos o mosteiro de Aljubarrota para celebrar a vitória sobre os castelhanos, no Chile o dia de uma derrota naval é celebrado com um feriado nacional. E os chilenos fazem também questão de não esquecer o Desastre de Rancágua, episódio em que os espanhóis deram uma valente sova aos independentistas chilenos. Já entre nós os portugueses, alguém conhece o nome das batalhas que levaram à perda da independência em 1580 e colocaram os Filipes no trono ?
Foi nestas viagens que encontrei a festa da Tirana. Os meus colegas chilenos, quando souberam que iria andar pelo deserto de Atacama, disseram-me para passar pela aldeia da Tirana e ver as festas. Reza a lenda na origem da aldeia, que quando os espanhóis desceram do Peru para conquistar o Chile e à procura do El Dorado, trouxeram com eles cativos alguns chefes incas para facilitar a submissão dos nativos chilenos. A lógica era simples, os incas eram os chefes dos povos do norte chileno e os espanhóis mandavam nos incas. Logo a mensagem para os ayamaras e atacameños era clara, nós espanhóis agora mandamos em vocês.
A coisa correu mais ou menos bem até que chegaram ao deserto de Atacama, e uma das princesas incas decide fugir e organizar os índios locais numa luta contra os nuestros hermanos. A moça encabeçou uma luta sem tréguas e de tal forma feroz, que os espanhóis lhe botaram a alcunha de La Tirana. Enquanto andava entretida a guerrear com os espanhóis, La Tirana y sus muchachos dão de caras com um português, que por ali andava perdido à procura do El Dorado. Parece que foi amor à primeira vista e a princesa foi incapaz de matar o português. Este junta-se à guerrilha indígena, converte a princesa ao cristianismo e juntos decidem fugir. Azar dos távoras, a guerrilha descobre a traição, mata os dois amantes e enterra-os sob um marco para lembrar a traição e o desprezo dos índios. Um par de séculos mais tarde, um padre passa no local em evangelização, ouve a lenda e decide construir uma capela em homenagem aos infelizes amantes, sob a égide da Virgem de La Tirana. Quando me contaram esta história, eu respondi que se a moça se enamorou de um português, certamente não tinha morrido virgem. Ninguém se riu, que eu interpretei como sinal de que uma carreira a fazer stand-up não era para mim.
A lenda em si é interessante, mas as festas essas são simultaneamente tão estranhas e tão reconhecíveis que é necessário estar lá para compreender. A aldeia da Tirana está perdida no meio do deserto de Atacama e não terá mais do que umas poucas centenas de almas, se contarmos duas vezes. Durante as festas facilmente o número de peregrinos facilmente ultrapassa as centenas de milhar, e do que me lembro os turistas contavam-se pelos dedos de uma mão, e sobraram dedos. Quem lá vai, vai por devoção. De certa forma, um pouco como Fátima nos primórdios antes da construção da basílica.
E se nós em Portugal vamos a pé a Fátima para pagar promessas, naquele canto do mundo os peregrinos acampam durante uma semana ao largo da aldeia. E pagam a promessa dançando e cantando mascarados com fatos que misturam tradições andinas, europeias e chinesas. Se não acredita, vá ao Google pesquisar por imagens da fiesta de La Tirana. De certa forma, a festa da Tirana é como um carnaval brasileio em que cortejos no sambódromo levam à frente uma padiola com a Virgem em cima. O cortejo tem uma canção para entrar na igreja, outra para prestar homenagem à Virgem e outra para se despedir. E eles fazem isto todos os dias durante uma semana, cantando e bailando de manhã à noite. Às dez da noite pára tudo e ajunta-se o povo em frente à igreja para ouvir a missa. Durante o dia um barulho imenso de música e dança, à noite não se ouvia um pio durante a missa.
Eu fiquei tão impressionado com o folclore de La Tirana, que quando dei por mim eram duas da manhã e eu sem saber onde ia dormir. Na boa tradição dos portugueses que andaram por estes lados, fui apanhado completamente desprevenido. Equipado apenas com a máquina fotográfica, a pensar que iria lá marcar o ponto e tirar a foto da praxe, dou de caras com uma espécie de Fátima com pista de samba no meio do deserto. Felizmente já dominava o espanhol, e foi fácil de encontrar alguém que estava a juntar malta para encher um autocarro com destino à cidade mais perto. E quando disse que era português, a viagem passou-se na conversa sobre a carreira do Figo e as diferenças entre os Maniche e o Costinha.