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De livro fechado, não sai letrado
Provérbio
Eu gosto imenso de ler, um hábito que tenho praticamente desde que o aprendi. O vício durante os primeiros foi sustentado pela biblioteca itinerante da Gulbenkian, mais tarde à custa de outros prazeres. E não poucas vezes à socapa da esposa, que se interrogava para onde ia o dinheiro. Mas, curiosamente, não sou grande fã de que me ofereçam livros. Eu gosto de ler, mas sobretudo gosto de andar à procura do que vou ler a seguir. Este ano foi um pouco pobre em leituras, o que é normal quando se anda à descoberta, encontra-se mais cascalho do que pepitas. Mas mesmo assim, fiz algumas boas leituras este ano.
A primeira foi a autobiografia de Martin Luther King, The Autobiography Of Martin Luther King, Jr., que apesar do título não é uma autobiografia. É antes uma coleção de cartas, textos e discursos escritos por Martin Luther King (MLK), que foi organizada muito após a sua morte em forma de biografia. Como quase toda a gente, já conhecia um pouco sobre MLK, mas o livro permitiu-me conhecer melhor o homem por detrás do mito. A luta pelos direitos civis nos EUA foi suja e desigual, com MLK e muitos outros da Southern Christian Leadership Conference a serem perseguidos, atacados e postos na prisão por exigirem o fim do apartheid que vigorava no sul dos EUA. Foi também neste livro que encontrei a melhor peça de retórica que li até hoje, o padre António Vieira que me perdoe. Trata-se da carta escrita por MLK da prisão de Birmingham, em resposta a uma outra publicada uma semana antes por bispos cristãos, a pedir o fim do movimento dos direitos civis. Escrita sob condições particularmente difíceis, na prisão à escondida dos guardas, esta carta de MLK conseguiu o feito de juntar a si os bispos que inicialmente o criticaram.
Um outro livro que também gostei de ler, o Poor economics, escrito por Abhijit V. Banerjee e Esther Duflo, ambos recepientes do prémio Nobel da Economia em 2019. O livro é provocativo porque pega, por assim dizer, o touro da pobreza pelos cornos. Embora focado na Índia e nalguns países africanos, o livro tenta perceber porque é que os pobres em geral tomam más decisões económicas. Extraordinariamente, ou talvez não, vai-se a ver e os pobres são pessoas absolutamente normais, mas que são obrigados a tomar decisões em contextos anormais. Desde acesso a serviços bancários, a instituições do governo e hospitais, um cidadão no terceiro mundo tem muito pouca escolha, e menos dinheiro ainda para se dar ao luxo de escolher por entre o pouco que há. Mas a principal vantagem do livro é não cair na tentação de romantismos bacocos ou ideologias da chacha. Para cada situação que descrevem, é feito um esforço para mostrar os vários lados do problema que geralmente é bastante complexo. Por um lado humaniza os intervenientes, por outro alerta para o perigo de cair em soluções fáceis, que não tomam em consideração o contexto local.
Aproveitando o aniversário dos 50 anos da primeira publicação, li as Novas Cartas Portuguesas, escrito em 1972 pelas "três marias", Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta. Inspiradas pelas cartas de amor de Soror Mariana ao seu cavaleiro francês, as autoras viram o bico ao prego e questionam a sua época e o domínio que os homens ainda tinham sobre os seus destinos. Admito que comprei o livro mais numa perspectiva de ler um clássico, do que pelo conteúdo. Mas ainda bem que o fiz, porque os textos são de uma qualidade irrepreensível e a própria personagem de Soror Mariana ganha uma complexidade de carácter e desejos, deixando de ser a tontinha perdida de amores nas cartas originais. O livro é frequentemente associado ao movimento feminista, mas é possível que poucas feministas hoje se revejam nestas Novas Cartas. Os textos criticam o domínio masculino exercido na época sobre as suas esposas e filhas, não os homens em si.
É raro ler livros que tenham sido publicados no mesmo ano, em parte porque tenho uma longa lista de espera e em parte porque vou lendo ao sabor dos meus interesses em determinado momento. Mas fiz uma excepção para o muito aguardado What If? #2 do Randal Monroe. Provavelmente pouco conhecido fora do mundo da ciência, o Randal é um físico que trabalhou na NASA e agora se dedica ao site XKCD, que é só o site obrigatório para os cromos das ciências e dos computadores. Como eu. O livro é uma coleção de perguntas absurdas submetidas ao autor, que ele tenta depois responder utilizando ciência e humor. Por exemplo, será que é possível construir uma piscina cujas paredes são de queijo (sim, e cheddar é a melhor opção), ou quantos pombos são necessários para fazer voar uma cadeira com um humano sentando (600, mais pombo menos pombo), ou quanto tempo demoraria uma pessoa a encher uma piscina olímpica com a sua própria saliva (8 mil anos, mais dia menos dia). Este tipo de cromices provavelmente só interessam a meia-dúzia de cromos como eu, mas se conhecer alguns ofereçam-lhe este livro que eles vão adorar.
E como estamos na Bélgica, não poderia deixar de mencionar três BDs. O "Zaï zaï zaï zaï" do Fabcaro, é um hino ao humor absurdo e non-sense com uma boa mistura de arrogância, ou não fosse o autor francês. Dificilmente será ao gosto de todos, este tipo de humor ou se adora ou se detesta. A série "Saint-Elme", com texto do Serge Lehman e desenho do Frederik Peeters, foi uma muito boa descoberta para quem como eu, gosta de policiais ao estilo do Twin Peaks. E por fim, "Nettoyage à sec" do belga Joris Meertens. Ele ficou conhecido por Béatrice, uma BD praticamente sem texto, mas eu prefiro este último pela forma como conseguiu capturar perfeitamente a atmosfera de Bruxelas.
E termino com dois livros que gostaria de ter lido, "The Moral Case for Fossil Fuels" do Alex Epstein e "False Alarm" do Bjørn Lomborg. O primeiro faz algo que é herético nos dias de hoje, defender os combustíveis fósseis. Herético, mas necessário, pois se não fosse o carvão, o gás e o petróleo não teríamos o conforto de que gozamos hoje. Sendo certo que devemos reduzir o nosso impacto no meio ambiente, as formas de o fazer ainda não são claras. O segundo livro, é do Bjørn Lomborg um matemático dinamarquês que tem a irritante mania de tentar perceber quais são as melhores formas de investir dinheiro para tornar o mundo melhor. Ele não é um grande fã de muitas das medidas que se tomam para prevenir o efeito das alterações climáticas porque, segundo ele, esse dinheiro seria bem melhor investido, por exemplo, em lutar contra a tuberculose ou melhorar a alimentação das crianças no terceiro mundo. O que me levou a juntar estes dois livros à minha longa lista de livros que um dia eventualmente vou conseguir ler, foi serem contra as modas da nossa época. Sim, temos que ser responsáveis pelo planeta Terra, mas o como é ainda uma pergunta sem respostas claras.