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Somos todos os dias bombardeados, quer seja na imprensa escrita ou através das televisões, por números, estatísticas, previsões e outro tipo de fórmulas matemáticas. A vida dos cidadãos (despromovidos a meros consumidores) passou nos últimos anos, fruto da rápida aceleração da globalização e tecnologia, a ser acompanhada e muitas vezes orientada por novos “palavrões” que se afastam progressivamente dos vários conceitos e valores que acompanharam a sociedade humana dita evoluída.
“Crescimento do PIB”, “défice estrutural”, “défice nominal”, “variação de crescimento da dívida”, “balança comercial”, “reforma estrutural”: grandes expressões que assombram o dia de governantes e de governados, deixando pouco espaço para outro tipo de debates, talvez mais essenciais ao desenvolvimento da condição humana.
Seja como for, o sistema económico atual não quer outra coisa a não ser “progresso”, “crescimento de PIB”. No entanto, até que ponto os valores de crescimento refletem a realidade no terreno? Valerá a pena “crescer a qualquer custo”? Serão estas grandes expressões espelho fidedigno das condições de vida e bem-estar da população?
Atrevo-me a dizer que provavelmente não serão. Aliás, basta ouvir o comum dos cidadãos e testemunhar as enormes dificuldades que muitos enfrentam: seja pelo trabalho precário; pelo difícil acesso à habitação; pelos salários estagnados; ou pelo aumento de custo de vida. A verdade é que com a crescente financeirização e desregulação da economia, o peso do fator trabalho no crescimento das economias observou uma forte redução, colocando os trabalhadores como o “elo mais fraco” de todo este debate, com as consequências que todos bem conhecemos.
Apesar de não ter seguido a trajetória assustadora observada nos EUA, a desigualdade económica também aumentou na Europa de forma gradual, mas sustentada, desde meados da década de 1980. Com a crescente adoção de políticas orientadas para o mercado em setores como a educação e a saúde, as divergências na qualidade e acesso aos serviços sociais também aumentaram.
As preocupações com as desigualdades aumentaram ainda mais no rescaldo da crise financeira pós-2008 e sucessivas doses de austeridade. Os efeitos duradouros (e imprevisíveis) da pandemia ameaçam, uma vez mais, os poucos progressos realizados nos últimos anos no que diz respeito ao combate às desigualdades e reforço da proteção social. A concentração das riquezas acentuou-se, a precariedade laboral e falta de perspetivas no médio e longo prazo são ameaças sérias à paz social dos nossos países.
A realidade é uma: tal como a pandemia veio demonstrar, e contrariando os arautos-proclamadores dos benefícios da “mão invisível”, nunca como hoje foi necessário termos um Estado forte, capaz não só de regular a economia, moralizando o apetite capitalista, como de voltar aos princípios básicos da promoção de uma economia social de mercado, apoiados em princípios da social-democracia. Isto é, voltar a fazer com que o elevador social funcione, combatendo as profundas desigualdades que assolam o nosso continente; garantindo educação pública gratuita de qualidade; um serviço de saúde universal e tendencialmente gratuito, e proteção social em todas as fases da vida.
A Cimeira Social do Porto, com a aprovação do Plano de Ação do Pilar Europeu dos Direitos Sociais, é um excelente exemplo do regresso da Europa à sua essência. Esteve bem Portugal quando colocou este assunto como a sua prioridade cimeira na agenda europeia. O Plano de Ação é importante, mas não é suficiente. O combate às desigualdades passa por uma forte componente redistributiva. Ora, hoje, a capacidade que o Estado tem de alargar a sua base tributária é manifestamente reduzida, concentrando-se no fator trabalho, quando deveria migrar, aos poucos, para o capital. Tal acontece porque a harmonização fiscal na UE é ainda um sonho. Estando numa União Económica e Monetária seria desejável e indispensável garantir que os países não entrassem numa lógica de competição fiscal desenfreada entre eles, promovendo a erosão da base fiscal de uns em proveito de outros. Se quisermos ser rigorosos há hoje, no seio da UE, um conjunto de estados que poderiam perfeitamente ser considerados “paraísos fiscais”. Muitos deles, apresentando taxas de crescimento de PIB muito acima da média europeia. O supercrescimento de uns é assim feito à custa da perda de receita fiscal noutros países. Tal situação é simplesmente insustentável.
O recente acordo da OCDE é importante. Mas como qualquer acordo global, está repleto de pequenos vazios jurídicos que deixam aos Estados alguma margem de manobra para reduzir a famosa taxa mínima de imposto de 15% sobre multinacionais. A discussão sobre a harmonização fiscal na UE está hoje parada, não havendo perspetivas para que tal se altere. Neste sentido, se quisermos garantir que os Estados têm capacidade para prosseguir o seu papel redistributivo, teremos de ponderar reforçar seriamente a componente social da Europa, equipando-a com instrumentos ambiciosos de resposta às desigualdades. Esse caminho está a ser percorrido: a garantia para a Infância é uma realidade; o plano de Ação do Pilar Europeu dos Direitos Sociais foi aprovado; o Fundo de Transição Justa será determinante nos próximos anos, e o SURE – um mecanismo de emergência criado para apoio aos desempregados provou funcionar durante a crise pandémica. São pequenos passos importantes.
Receio, no entanto, que não sejam suficientes para responder às necessidades prementes e urgentes de milhares de cidadãos que parecem desacreditar, pouco a pouco, no sistema democrático – muitos deles jovens. Temos pela frente meses e anos determinantes.
Ora, é importante recordar aos responsáveis políticos que a Democracia é impossível sem Igualdade. Diria até mais, a Liberdade é impossível sem Igualdade.
É tempo de voltarmos a colocar o combate às desigualdades no topo da agenda política.