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A política portuguesa é hoje aflitiva de acompanhar. É predominantemente povoada por imberbes, imaturos, por gente sem visão. Um triste fenómeno observável em todos os quadrantes políticos e em todos os partidos sem exceção. No meio deste ambiente deprimente, há um homem, geralmente descrito como um "animal político", que a todo o momento mostra que merece tal cognome. Esse homem chama-se António Costa.
António Costa chegou ao poder de uma forma peculiar. Coligações negativas não são propriamente uma originalidade portuguesa, são aliás bastante comuns por essa Europa fora. Contudo, em Portugal, num cenário de quasi-bipartidarismo dada a hegemonia de PS e PSD, nenhum partido se atrevera até então a estabelecer acordos além das suas linhas vermelhas históricas com o objetivo de chegar ao poder sem ser o partido mais votado. António Costa fê-lo. Ele, que liderava um partido herança de Mário Soares, não teve pejo em aceitar a mão de interlocutores em quem o fundador do partido nunca confiou. Fê-lo porque sabia que a alternativa era abdicar permanentemente do poder, pois os seus camaradas nunca aceitariam uma derrota numas Legislativas que deveriam ser fáceis (nesta altura, António Costa ainda era, claramente, um animal político em formação).
A nomeação de António Costa como Primeiro-Ministro de Portugal constituiu o início de uma caminhada ambiciosa só ao alcance de alguém dotado de grande inteligência. Contudo, sem as circunstâncias certas, naturalmente teria sido muito complicado. Por isso, o primeiro momento-chave foi a eleição de Marcelo, ao qual Costa foi alheio, mas que lhe deu imenso jeito. Desde que se tornou chefe de Estado, Marcelo fez da estabilidade política o seu grande mantra. Assim, num cenário que poderia ser muito complicado, Costa teve em Marcelo um aliado com o qual podia contar sempre que fosse preciso suavizar a opinião pública.
A primeira Legislatura de Costa foi, na ótica do próprio, um tremendo sucesso. Apesar da conjuntura macroeconómica favorável, parecia inexplicável como é que um governo conseguiu conciliar por um lado um acordo com dois partidos que exigiam aumentos consideráveis de despesa pública e por outro compromissos internacionais que são sempre frugais aos olhos portugueses. O segredo estava nas famosas cativações popularizadas por Centeno. A cada outono, Costa prometia mundos e fundos aos partidos que lhe davam suporte parlamentar, esvaziando-os completamente no seu argumentário. No resto do ano, simplesmente não gastava esse dinheiro. Era enfim o primeiro golpe de génio de António Costa, que secava completamente a esquerda e a direita sem que ninguém desse conta. Claro que hoje todos sentem a degradação dos serviços públicos consequência desta estratégia, mas, enfim, politicamente, foi um absoluto sucesso, premiado com um reforço de poder nas Eleições Legislativas de 2019.
Nesse ano, vendo o PS a crescer à sua custa, os partidos de esquerda não podiam continuar sem nada fazer, daí a recusa em assinar acordos de governação com o PS. Felizmente, Marcelo continuava a ser útil, apaziguando as hostes sempre que necessário, mas mesmo Marcelo iria ser curto para sanar a tensão que se antevia com as crescentes reivindicações dos antigos parceiros. Até que, em boa hora, rebenta uma pandemia. A cartada da estabilidade tornou-se fortíssima e demasiado apelativa. Durante 2 anos, criticar o governo era quase heresia. Assim, durante dois anos, Costa teve espaço para respirar, que aproveitou brilhantemente para se mostrar como um grande diplomata. Este foi o início do António Costa Europeu. Este foi o início de uma estratégia cujo objetivo era Bruxelas. Com a oposição à esquerda e à direita capturada pelas circunstâncias pandémicas, Costa teve free-pass para se internacionalizar, e fê-lo com êxito.
A pandemia contudo não seria eterna, e com o seu fim começaria uma crise económica profunda que mancharia certamente a sua imagem. Para piorar a situação, a gaiola que aprisionava a oposição estava agora aberta, pelo que a estratégia governativa teria de mudar rapidamente. Foi isso que o governo tentou fazer em outubro de 2021. O que Costa talvez não esperasse é que a oposição à sua esquerda tivesse coragem de chumbar o Orçamento de Estado, levando o país a eleições antecipadas. Era um péssimo timing. A vaga na Europa só abria em 2024, pelo que sair de cena no final de 2021 seria impensável. Era demasiado cedo, e mesmo que não fosse, o PS não estava preparado para ir a eleições sem Costa. Assim, Costa ia a eleições, mais do que para ganhar, para manter o status quo por mais dois anos.
Se Costa ia a eleições para ganhar, aquilo com que ninguém contava era que ele acabasse a arrasar. Maioria absoluta. Uma vitória esmagadora... que não lhe dava jeito nenhum... Uma maioria que o prenderia ao poder até 2026, completamente fora dos timings para os objetivos europeus. Relembro: a Legislatura anterior era suposto acabar no final deste ano, 2023, mesmo a tempo. Mais ainda, como Marcelo fez questão de lembrar, a campanha eleitoral foi tão pessoalizada que, saindo Costa, o governo acabaria. Costa fora então vítima do seu próprio sucesso.
Este cenário era um autêntico revés para Costa. Se há coisa que Durão Barroso ensinou é que os portugueses não perdoam políticos que deixam Portugal para seguir as suas ambições políticas além-fronteiras. Ou seja, Costa sabe que, saindo, deixará o PS apeado, e por muito que ele tenha trabalhado para se internacionalizar, deixar o partido apeado dá uma péssima imagem aos partidos-irmãos na União Europeia. Assim, com uma maioria absoluta, só restava uma solução a Costa: boicotar o trabalho do seu próprio governo, sem contudo estragar a sua imagem. Parece contraintuitivo, estúpido até, não é?
Eis que entra novamente em cena o génio de Costa. Para começar, juntou no seu governo todos aqueles que são vistos como seus sucessores, originando intencionalmente uma luta de poder interna que, como temos vindo a aprender na gestão do dossiê TAP, era de tal forma grave que ministros se recusavam a partilhar informação com outros ministros. Depois, com as ruas em polvorosa, os seus súbditos parecem instruídos a chocar de frente com classes profissionais inteiras, agitando ainda mais a situação (lembram-se das Operações Stop aos autocarros dos professores que iam protestar?). Só que nada disto seria suficiente pois em Belém ainda mora Marcelo. Em Belém, o rei da estabilidade deixou de dar jeito e passou a ser um problema para as ambições de Costa. Era, pois, preciso romper com a aliança entre São Bento e Belém. É este o prólogo que dá origem aos episódios dos últimos dias.
Para quem observa de fora e nunca com ele privou, Marcelo parece ser bom homem. Contudo, até o melhor dos homens perde a compustura quando é humilhado. Ora, se Costa precisava de desestabilizar o seu governo, então tinha que abanar um pilar essencial nessa estabilidade: Marcelo. Como tal, o caso Galamba foi a oportunidade perfeita que talvez Costa anseasse. Ao desprezar a palavra de Marcelo sobre a demissão do ministro, Costa não se limitou a desautorizar Marcelo, ele feriu o seu orgulho. Marcelo, o bom homem que frequentemente apoiou Costa, foi completamente pisado, sem dó nem piedade.
As reações a este episódio têm sido relativamente consensuais a atribuir a Costa mais uma grande vitória. "Deixou o Presidente refém, de pés e mãos atados", diz-se. Ora, é aqui que estou em desacordo com a generalidade dos comentadores de nossa praça. Costa não fez de Marcelo refém, o que Costa fez foi avançar para um divórcio litigioso. A partir de agora, Marcelo, abananado, não mais será amigável para Costa, o que seria negativo não fosse isso ser exatamente o que Costa quer. Rodeado de boys e girls, a maioria de competência duvidosa, Costa sabe que no próximo ano vão aparecer casos e casinhos a toda a hora, queimando todos os meninos do aparelho que aceitarem apetitosos pedacinhos de poder.
A certa altura, o fumo será tanto que a Marcelo não restará outra alternativa: dissolver o Parlamento e avançar para eleições. Costa sairá certamente chamuscado (para todos os efeitos, a equipa ministerial é responsabilidade dele), mas não será o mais chamuscado desta história. Mais ainda, o PS poderá até perder as eleições, exatamente aquilo que Costa precisa pois aí terá a desculpa perfeita para sair de cena do panorama nacional. Por outras palavras, se os planos lhe correrem de feição, Costa sairá de cena na mó de baixo mas com uma imagem limpa q.b. para manter as suas ambições intactas. É uma estratégia soberba que, resultando, demonstrará na perfeição o animal político que Costa é.
Claro que tudo isto só é possível porque há 1) boys e girls que se sujeitam ao papel de idiotas úteis, 2) uma oposição imatura e pouco carismática, e até 3) um pouquinho de sorte. Contudo, diz o povo e com razão que em terra de cego quem tem olho é rei, e nesta terra Costa tem os dois olhos bem abertos. Teve sorte nas circunstâncias, mas poucos seriam capazes de fazer uma limonada destas com os limões que a vida dá. O problema é que, por muito que esta história seja cativante para os political junkies (Vitor Matos TM), enquanto tudo isto acontece, o país sofre e continuará a sofrer. O que é uma pena. Como diz João Miguel Tavares, é um desperdício tamanho génio político servir apenas para gerir politiquices e não para reformar o país. É uma espécie de Darth Vader luso. E mesmo o próprio PS, mais cedo ou mais tarde, terá de lidar uma crise interna. Mas, para Costa, isso pouco interessa. Quem vier, que feche a porta.