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E por que reparas tu no argueiro que está no olho do teu irmão e não vês a trave que está no teu olho?
Mateus 7-3:5
Eu não acompanhei as mais recentes presidenciais brasileiras, mas não consegui deixar de ouvir um burburinho de que teria existido fraude. Tal como nas mais recentes eleições dos EUA, em que Trump, tal e qual uma lapa agarradinha ao poder, lançou acusações de fraude a torto e a direito na esperança de continuar na Casa Branca. Visto as paixões que estas duas eleições provocaram nos eleitores, dei comigo a pensar que isto daria um bom enredo para um filme. E até já tenho a ideia para o guião.
A história passaria-se numas eleições locais, digamos um município, para tornar a coisa mais credível. Nestes eleições concorre João, o actual presidente da câmara, um tipo bonacheirão e com boa imprensa, contra Pedro, um candidato sem grande experiência política e de quem se diz que passa mais tempo em discotecas do que a trabalhar. Naturalmente as sondagens dão uma larga vantagem ao João. Chega-se à noite eleitoral e todos, incluindo o Pedro, acreditam que o João vai ganhar. Mas contam-se os votos, e inexplicavelmente o Pedro acaba por ganhar por uma curtíssima margem de votos. Incrédula, a campanha do João aceita a derrota e vai dormir. A reviravolta no cenário sucede uns dias depois. Um funcionário da câmara suspeitando de que teria ocorrido fraude eleitoral, entra em contacto com um jornalista para lhe contar as suas suspeitas. O jornalista não se mostra muito receptivo, até que um mês depois o funcionário da câmara é encontrado morto no seu apartamento em circunstâncias muito misteriosas. Será que afinal tinha razão ?
O que acha, daria um bom filme de Hollywood ? O único senão desta história, não só é verídica como já foi contada pelo João Ramos de Almeida no seu livro "Eleições Viciadas" a propósito das eleições autárquicas de 2001. Nesse ano, Pedro Santana Lopes ganhou a Câmara de Lisboa ao João Soares por uma margem de 856 votos. Eu recomendo vivamente o livro por dois motivos. Primeiro porque o autor é assumidamente de esquerda e na sua investigação concluiu que Santana Lopes ganhou as eleições sem vícios. E segundo porque mostra de forma crua e fria a fragilidade do sistema de contagem de votos. Não foi possível uma recontagem dos votos porque estes foram destruídos logo após as eleições. Mas o autor encontrou exemplos de actas rasuradas, de contagens alteradas e votos anulados sem justificações aparentes. O que é de espantar pois as mesas de voto foram presididas por juízes, que à partida conheciam as regras do processo. A conclusão do autor é que existiram erros na contagem de votos, que beneficiaram os dois lados, mas muito provavelmente foram erros humanos e não actos deliberados de fraude.
É interessante que o livro tenha surgido em 2007, quando as redes sociais ainda estavam na sua infância. Hoje, basta alguém gritar fraude que logo se lhe junta uma multidão enraivecida por detrás dos teclados, a clamar justiça e sangue. Frequentemente basta o sangue para as contentar.
Como quase tudo na vida, nisto das paixões o futebol é um bom exemplo. Eu, que tenho a infelicidade de ser sportinguista, estou convicto que todos os árbitros roubam o Sporting. Mesmo quando ganha, algo raro nestes últimos tempos, é uma certeza minha inabalável de que o Sporting foi roubado pelo árbitro. Como não interessa, apenas sei que foi. E não sou só eu que partilho desta certeza à prova de bala. Conheço muitos benfiquistas e portistas que partilham a minha fé de que o árbitro rouba. Só discordamos para que lado, mas se eles não sofressem de clubite aguda de certeza que concordavam comigo. Porque é um facto incontestável, o Sporting é sempre prejudicado pelos árbitros.
Ironia à parte, é fácil de reconhecer o efeito nefasto da polarização na arena política, onde não tem lugar. A democracia para funcionar, exige que se cheguem a acordos. É por isso que a Bélgica consegue estar meses, por vezes anos, sem um governo até os partidos se entenderem. Um país artificial, com três línguas oficiais e cinco primeiros-ministros, só mesmo o compromisso como forma de vida consegue manter o país em funcionamento. E é aqui que temos que reconhecer o problema da polarização. Sobre o tema, o Rui Ramos escreveu muito acertadamente:
Há, no entanto, uma coisa mais deprimente do que a polarização política: é o debate sobre a polarização política. Toda a gente lamenta as divisões. Toda a gente lembra saudosamente tempos em que os adversários se respeitavam. E toda a gente tem, invariavelmente, o mesmo remédio para voltar à idade de ouro: bastaria que o outro lado passasse a concordar connosco. Porque, como é óbvio, o problema é sempre do outro lado: foi o outro lado que se “radicalizou”. A ninguém ocorre que achar o outro lado “radical” pode significar apenas que nos tornámos intolerantes a ideias que não sejam as nossas.
A última frase é a mais importante. Nós, eu e você, tornamos-nos intolerantes às ideias do outro e só podemos avançar se reconhecermos o erro. Sem este passo, é fácil cair na tentação de ver fraudes e conspirações para impedir as nossas ideias de vingar em eleições. Não que elas não existam, note-se bem. Apenas que não têm o poder que frequentemente lhes atribuímos.
Voltando à vaca fria, no Brasil poderá ter havido fraude? Talvez, é sempre possível, mas a meu ver bastante improvável. No Basil utiliza-se o voto electrónico já há décadas, desde 1996, exactamente para prevenir fraudes eleitorais. Eu não sou fã do voto electrónico, mas o processo brasileiro é transparente, pelo menos para quem domina o jargão tecnológico. Sendo verdade que nenhum sistema é perfeito, o Brasil já tem décadas de experiência com o voto electrónico e o processo já deve estar mais que rotinado. Quanto às suspeitas que têm sido levantadas, convém lembrar o princípio de Hanlon: não devemos atribuir à malícia o que pode ser justificado pela incompetência. Como o João Ramos de Almeida verificou in loco nas autárquicas alfacinhas de 2001, os erros frequentemente são humanos e não deliberados. Excepção feita, obviamente, quando se trata de árbitros em jogos do Sporting.