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"Sim, realmente, pois, veja bem, os pecados do pai vão recair sobre os filhos".
Lancelot no "Mercador de Veneza"
A citação que acompanha o título é dita por Lancelot a uma judia, Jéssica, na peça o "Mercador de Veneza", de Shakespeare. E tem como propósito justificar a exclusão e os maus tratos a que os judeus eram sujeitos na época. Porque foram os judeus que entregaram Jesus para ser crucificado, preferindo libertar Barrabás, esse acto para sempre condenou não só quem o cometeu mas também todo o povo judeu e os seus descendentes. É uma noção de pecado ancestral que se estende a toda uma comunidade durante gerações, algo muito enraizado no judaísmo, e por extensão também no cristianismo. E que levou a Igreja, através de tortuosas discussões teológicas, ao conceito de pecado original.
Esta noção de pecado ancestral, cometido pelos pais e que se estende aos filhos, netos e por aí em diante, provavelmente parece-lhe absurda. Mas por muito antigo e longínquo que parece o conceito, continua hoje bem presente na época pós-cristã em que vivemos. Só assim se explica que o Presidente Marcelo tenha pedido desculpa pelos pecados cometidos pelos portugueses de antanho no Brasil. Pode-se sempre argumentar que o catolicismo do presidente foi decisivo para o acto, mas a exigência de um pedido de desculpas e de reparações financeiras é algo que uma parte da esquerda reclama há muito. Como por exemplo Cristina Roldão, que dificilmente se poderá acusar de ser um rato de sacristia, e que afirma peremptoriamente que "Portugal foi o país que mais pessoas negras traficou", e suportada pelo conceito de pecado ancestral, estende a culpa ao Portugal moderno. O que mostra a força e o impacto que conceitos religiosos ainda têm nos dias de hoje, guiando e suportando as palavras dos que se dizem contra a religião.
Discussões teológicas à parte, parece-me óbvio que os crimes dos pais não passam para os filhos. É absurdo que se prenda a família de um ladrão ou assassino E se você for apanhado a não respeitar um sinal de STOP, é você e não os seus netos que levam com a multa. Também me parece por demais evidente que responsabilizar os vivos por actos cometidos já lá vão séculos é abrir uma caixa de Pandora. É permitir que se comece a culpar as pessoas por associação. Se assim fosse, deveria Portugal expulsar os filhos do responsável pelo ataque de há um mês ao Centro Ismaili? Ou mesmo expulsar todos os muçulmanos? É certo, foi um muçulmano que o cometeu, possivelmente motivado por crenças religiosas, mas também é certo que foram muçulmanas que morreram. A culpa por associação é cega, desproporcional e iníqua.
Existe um outro argumento da parte de quem exige aos portugueses, um pedidos de desculpas e reparações pelo tráfico de escravos. Que sumariamente diz que Portugal foi economicamente beneficiado pelo comércio de escravos, e portanto parte dos benefícios (infraestructuras, educação, pé-de-meia familiar, etc) com que nós portugueses hoje vivemos advêm dos lucros do tráfico de escravos. Este argumento tem um problema óbvio: não foram só europeus a lucrar com o tráfico de escravos. Existiram muitos africanos que participaram e lucraram com o negócio, e a própria escravatura em África começou muito antes dos portugueses sequer terem começado a cortar as tábuas para fazer as caravelas. E só terminou décadas depois de Portugal ter abolido e combatido o tráfico de escravos.
De acordo com a "Crónica dos Feitos da Guiné" de Zurara, Antão Gonçalves foi o primeiro navegador português a capturar e e trazer escravos negros para vender em Lisboa. Se eu, Nelson Gonçalves, sou beneficiário desta venda, qualquer que seja o meu parentesco com o tal Antão, porque não o são também os africanos que participaram no negócio de escravos? Por exemplo, os descendentes de Francisco Ferreira Gomes, um negro livre que durante cerca de vinte anos vendeu cerca de 7 mil escravos de Benguela para o Brasil ? Ou os Souzas do Benim que são descendentes de um dos maiores traficantes de escravos do século XIX? Curiosamente o patriarca, Francisco Félix de Souza, nasceu no Brasil e fez fortuna vendendo escravos também para o Brasil.
Finalmente, existe ainda um outro argumento lançado a favor do redentor pedido de desculpas. Durante largos séculos, a escravatura gozou dos mesmos incentivos e da mesma protecção da Coroa que as outras actividades comerciais. É portanto legítimo afirmar que Portugal tem responsabilidades no tráfico de escravos. Mas é também legítimo perguntar que Portugal é este. Imagine uma pobre camponesa de mil e quinhentos, que nasceu, viveu e morreu em Guadramil, para os lados de Bragança. Que poder tinha esta senhora para ditar ou alterar as regras da sociedade portuguesa ou que influência tinha nas decisões da Coroa ? Ou então um camponês nascido mais abaixo, na aldeia de Deilão e na mesma época. Será que foi tido e achado nas decisões reais ? É fácil de continuar o exercício, e perceber que boa parte da sociedade portuguesa na época dos Descobrimentos não participou no tráfico de escravos, não foi beneficiada pelos lucros das viagens e mais importante, não foi ouvida nas decisões tomadas pelos governantes. Argumentar que são culpados, ou beneficiários, do tráfico negreiro é novamente utilizar a culpa por associação.
Conhecer e reconhecer a História não implica pedir desculpas por actos praticados há séculos, quando o Mundo era outro. Os governantes portugueses devem sim pedir desculpas pelo que efectivamente está ao seu alcance e sob a sua responsabilidade. Por exemplo, o tratamento desumano dos emigrantes em Odemira e noutras partes do Alentejo. Ou as filas diárias à porta do centro de saúde, as greves constantes dos transportes públicos que afectam os mais pobres, o esbulho de dinheiro na TAP ou um país estagnado cuja principal exportação são jovens qualificados à procura de uma vida melhor. Mas isso seria reconhecer as suas próprias responsabilidades. Quando é muito mais fácil culpar meia-dúzia de pessoas que estão a fazer tijolo já lá vai um ror de anos.