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A História da Europa é profundamente marcada pelas interações entre os povos europeus e os seus vizinhos, interações estas que, nos últimos 500 anos, levaram por demasiadas vezes à colonização de territórios noutros continentes. Na realidade, ainda hoje nos aproveitamos dos frutos deste passado colonial: a batata, por exemplo, um elemento típico da gastronomia portuguesa, tem origem na América do Sul e foi trazida pelos espanhóis após a ocupação da Cordilheira dos Andes. Foi o elevado valor energético da batata e a sua capacidade em resistir à severidade do inverno que impediram os europeus de serem dizimados pelas ondas de fome durante o século XVIII.
Porém, há um produto em particular que marcou o modo de vida de um incontável número de pessoas e que no meu caso, enquanto estudante universitário, acompanhou grande parte das minhas jornadas de estudo: o café. A bebida chegou ao Ocidente entre os séculos XVI e XVII através das trocas comercias frequentes entre os portos venezianos e o Norte de África, e rapidamente ganhou fama junto da aristocracia europeia. Mais tarde, as sementes de café foram levadas para a América do Sul onde o seu cultivo se disseminou, impulsionado pelas atrocidades de um sistema esclavagista sem precedentes. Muitas destas plantações resistiram até aos dias de hoje, em grande parte graças ao trabalho forçado de milhões de escravos arrastados do continente africano, tornando o Brasil no maior produtor de café a nível mundial e a Colômbia no terceiro maior. A escravidão foi parte da estrutura social sul-americana até 1888 e desde aí os trabalhadores deste setor, embora ainda frequentemente sujeitos à precariedade, viram desenvolvimentos significativos nas suas condições laborais e, nos dias que correm, a produção de café é representada por organizações como a “Federación Nacional de Cafeteros de Colombia”.
Com o papel destes dois gigantes sul-americanos e das nações do sudeste asiático (Vietname e Indonésia ocupam o 2.º e 4.º lugares na produção mundial, respetivamente) facilmente a origem do café cai no esquecimento e o consumidor comum provavelmente atribuirá o mérito à Turquia ou a um país do mundo árabe, tendo em conta a importância do café nestas culturas. Em boa verdade, a reposta não estaria completamente errada: a introdução da bebida nestas nações e, posteriormente, nos países europeus, iniciou-se a partir da Península Arábica, na região onde agora se encontra o Iémen. Contudo, os cafeeiros não eram nativos desta zona, mas sim produtos de importação que cruzaram o Mar Vermelho a partir do Corno de África. Foi nas montanhas da Etiópia que, pela primeira vez, se identificaram as propriedades destes grãos e ainda hoje o país representa a 5.ª maior percentagem de produção à escala global.
Infelizmente a realidade do cultivo neste país está muito longe da sul-americana. Se no passado os etíopes eram esmagados por um sistema opressor alicerçado pela discriminação racial, neste momento pode-se dizer que são vítimas de uma escravidão da necessidade e de uma subjugação às vontades do modo de vida ocidental. Neste que é um dos países mais pobres do mundo, o café tem uma enorme importância: não só é o bem mais exportado, como cerca de um quarto da população está direta ou indiretamente ligada ao setor. É provavelmente devido a esta dependência que as plantações de cafeeiros são lar de uma das imagens mais degradantes da atualidade – no meio rural, mais de metade das crianças etíopes estão de alguma forma associadas ao trabalho infantil, principalmente em quintas agrícolas. Crianças que muitas vezes têm apenas 5 anos. Esta exploração é resultado direto da ineficácia do mercado internacional em combater as desigualdades económicas a que os pequenos agricultores (cerca de 4 milhões na Etiópia) estão sujeitos, para os quais apenas reverte uma pequena parte dos fundos da exportação de café, tornando impossível o investimento em métodos de cultivo e equipamentos mais sofisticados. A produção de café na Etiópia é, mais que um ofício, uma questão de sobrevivência.
Nos últimos anos esta sobrevivência tem sido abalada pelas variações no clima, induzidas pela ação descontrolada do ser humano. As plantações de café requerem temperaturas específicas e, se nos mantivermos a este ritmo, em 2050 as áreas de produção em todo o mundo serão metade das que existem agora. Além disso, estas mudanças climáticas ameaçam a variedade genética dos cafeeiros, tornam mais provável o aparecimento de pestes e aumentam a frequência de fenómenos extremos como tempestades e secas, que para além da devastação que causam, abrem caminho para a formação de pragas de insetos que consomem todas as plantações que encontram em poucos dias. Foi isto que aconteceu no Este de África durante a primeira metade de 2020 e nos últimos dias têm surgido indícios de uma segunda vaga que pode pôr em risco a totalidade da produção agrícola da região.
A história do café é a história de uma planta africana e de um povo africano que foram obrigados a percorrer meio mundo para satisfazer os desejos do Ocidente e cuja origem se dissipou na memória da maioria. O presente são as dificuldades cada vez mais acentuadas de quem dedica a vida a este trabalho e o desleixo do mesmo Ocidente perante milhões de etíopes na iminência da pobreza. E mesmo admitindo que é tarde demais para mudar os erros e as injustiças do passado, temos de nos lembrar que este é o momento para assegurar a existência de um futuro.