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Na cidade de Cantanhede, o nosso primeiro passo foi de ordem gastronómica e levou‑nos ao Marquês de Marialva. Em boa hora o demos, pois aí o serviço é escorreito e as panelas regurgitam de arte culinária.
As entradas, apresentadas de jeito instagramável e gratas ao paladar, formam reino rico e independente. Incluem melão, presunto e outros mimos da charcutaria, queijos, manteiga, uvas, abacaxi, nozes, pataniscas de bacalhau e ostras. Para o papel principal, propuseram‑nos bacalhau com gambas (gratinado), arroz de robalo, rojões, cabrito assado, lombinhos de vitela em pimenta e ainda vegetais salteados com queijo de soja. Pedimos cabrito e rojões, não lhes pudemos apontar pecha. Quanto ao prato das sobremesas, o pastel de nata, o toucinho do céu e o doce de ovos fizeram‑nos estalar os beiços. Bebendo um tinto Marquês de Marialva, frutado e com retrogosto longo, de uvas da casta predominante na Bairrada, a baga, obsequiámos a casa e a região.
Dois ou três copos da boa pinga não obstaram a que nos concentrássemos nos tesouros da Igreja Matriz de Cantanhede, consagrada a São Pedro. Encontram‑se no interior do templo e, como se espera em Cantanhede, são peças de escultura moldadas em pedra (conquanto na capela‑mor avulte a grande tela do retábulo de madeira, não a matéria lítica).
A Capela do Santíssimo Sacramento, construída para acolher túmulos de membros da família Meneses, é a parte mais interessante da igreja. A sua cobertura abaulada, de pedra, está dividida em caixotões decorados com motivos florais. Saliento o retábulo, obra de João de Ruão. Igualmente pétreo, ritmado por pilastras, tem o sacrário no meio e exibe relevos policromos que figuram São Mateus, São João, São Lucas, São Marcos, Cristo em frente da Virgem e Cristo diante de Madalena. Na parte superior da composição retabular, dois anjos músicos flanqueiam divisão em cujo centro se acha um cálice, encimado por hóstia envolta em resplendor, e, em ponto mais elevado, outros anjos seguram os reposteiros.
A segunda capela colateral à capela‑mor exibe, na parede fundeira, um retábulo de pedra de Ançã, mas o que nela mais me atraiu foi, por uma banda, o retábulo pétreo, do século xvɪ e de feitura coimbrã, devotado a Nossa Senhora da Rosa — na escultura, de que se evola meiguice, a Virgem oferece a flor ao Menino. E, por outra banda, a figuração do Calvário em pedra de Ançã pintada, obra do século xv.
Bem assim, não descure o visitante o retábulo de pedra de Ançã dedicado a Nossa Senhora da Misericórdia e atribuído a João de Ruão, nem a Capela de Santa Rita, que tem cobertura bem decorada e harmonioso retábulo de talha dourada no qual sobreleva a imagem do orago.
Dois dias depois de lá termos estado, eu e a Jūratė voltámos a Cantanhede, queríamos visitar o Museu da Pedra, instalado numa casa patrícia e armoriada, erguida no século xvɪɪɪ.
O museu compreende salas de exposição permanente devotadas à arte sacra — nelas nos demorámos —, à arqueologia e à geologia. A arrumação das peças e os esclarecimentos prestados a respeito das mesmas tornam o giro agradável, permitem aprender e satisfazem os que, como eu, valorizam — rectius, necessitam — de sistematização e de informação, designadamente nas visitas a museus e a galerias de arte.
Gostei de um sem‑número de peças expostas. Não cabe aqui falar sobre todas elas e carrego somente espírito de diletante. Deixo apenas algumas notas. Na austera secção de escultura românica, apreciei uma lápide de 1211, comemorativa da conclusão da Torre de Belcouce, que integrava a cerca urbana de Coimbra. No que toca à escultura gótica, fixei‑me numa Santa Catarina de Alexandria policroma, do século xv. Em matéria de escultura renascentista, apreciei o pequeno retábulo de Nossa Senhora da Assunção, do século xvɪ.
O torrão do museu que mais me cativou foi o dedicado à escultura barroca, esse universo de cenografia e de apego ao efeito decorativo. Ali se encontra um conjunto de seis esculturas, próprias de um Barroco áulico, que a Universidade de Coimbra encomendou a Claude Laprade. Figuram a astronomia, a medicina, os cânones, a teologia, Justiniano (assim se evoca o direito romano) e as leis. São obras de calcário proveniente das pedreiras de Portunhos, que fica perto de Ançã, e, tirante a da astronomia, reproduzem o tamanho natural. Como é próprio do Barroco, evidenciam gosto pelo arranjo dinâmico e teatral.
No museu, graças a uma mostra temporária, completei impressões, arrecadadas durante o passeio pela região, acerca da casa gandaresa, um edifício de piso térreo, por norma construído com adobe e organizado em torno de um pátio que dá acesso à casa, ao curral, ao celeiro e a outros anexos.
Saiba, leitor, que o museu foi dirigido por uma prima minha, pessoa que prezo, e decerto aquilo que vi resulta, ao menos em parte, de méritos que lhe devem ser atribuídos. No entanto, isso não pesou nos elogios que acima soltei.
Antes de deixarmos Cantanhede, ainda fomos aos paços do concelho e à livraria Kiss Kiss Bang Bang.
O imóvel no qual está instalada a câmara municipal pertenceu à ilustre família Meneses e foi construído no século xvɪ. Funcional e adequado aos fins para que hoje serve, guarda elementos da edificação original e mantém encantos de antanho. Com ressalva da torre, erigida no século xx e denotadora de bom critério, os paços do concelho manifestam pendor horizontalista. A frontaria, crivada de aberturas, é elegante e proporcionada. O modo franco do cantanhedense autorizou‑nos a circular no interior do edifício. Gostámos de passear numa galeria superior do pátio ornada de colunas jónicas e, sobretudo, dos painéis azulejares do átrio, mormente daquele que recorda a Batalha de Montes Claros.
Na Kiss Kiss Bang Bang, fiz proveitosa colheita de livros editados pela Antígona, livros que realmente interessam e que me confrontam com as minhas convicções, sobretudo a propósito do capitalismo e em matéria de emprego do meu tempo. Ao contrário do que sucedeu noutras livrarias em Portugal, nesta não vi lixo literário.