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Nos imóveis que cingem o largo central de Lier, o elemento utilitário que ressai de lojas, cafés e restaurantes convive com o elemento religioso e com recursos de ordem histórica e estética: a capela de Santiago, frequentada pelas tropas espanholas no século xvɪɪ e por isso denominada «capela espanhola»; a «casa do carvalho», de frontispício barroco, aí esteve instalada uma câmara de retórica; o edifício que acolheu a guilda dos negociantes de carne, reformado de acordo com o cânone neogótico; empenas com curvas, empenas em degrau, lunetas, relevos de bom gosto, volutas e outros ornatos. Situados no coração do rossio, o campanário gótico, de 1369, e o paço da cidade, bonito palacete do século xvɪɪɪ, exibem gostos de épocas distintas e deixam a melhor e mais duradoura impressão. A despeito de tanta bona res, o que interpela quem conhece as grand‑places da Bélgica é o traçado desta, em Lier — a sua forma aproxima‑a do triângulo escaleno.
Na praça, uma epígrafe assinala o local onde, pela última vez, uma mulher foi morta em resultado de acusações de bruxaria (aconteceu em 1590). Há alguns meses, o governo municipal pediu desculpas pela execução de bruxas. Complementou‑as com um lembrete relativo ao perigo que representam formas de governo contaminadas pelo boato e pela histeria e homenageou a mulher em causa, Cathelyne van den Bulcke, que preferiu morrer a nomear outras bruxas. Ato sábio e pertinente, o das autoridades de Lier. Certos adquiridos de ordem civilizacional vêm sendo beliscados por causa da propagação de notícias falsas nas redes sociais e da caça bárbara à conduta e à moral de outrem. A ideologia do humano está a perder terreno para a perseguição ao humano e hoje cabe falar de caça às bruxas, fenómeno ainda mais perigoso se tiver patrocínio institucional. Vale a pena recordar que, em 2018, no México, dois homens foram assassinados por uma multidão ensandecida na sequência de uma atoarda, espalhada através de WhatsApp, em que lhes era imputado o rapto de menores. Na Colômbia e na Índia também houve linchamentos consecutivos a rumores difundidos por WhatsApp.
A colegiada de São Gomário abriga património artístico de truz. O estilo gótico predomina, o Barroco e o Rococó deixaram marcas. Mercê do seu desenho, a lanterna octogonal que remata a torre da igreja é conhecida por «pimenteiro». Lastimo não ter os saberes que me permitiriam compreender melhor o arreio do interior do templo. Ainda assim, aí apascentei olhos e espírito e deixo menção àquilo que mais me agradou: o púlpito barroco; o relicário de prata; a grisalha do século xv que figura a coroação de Maria, composição fina na qual o motivo é posto em evidência graças à sua inserção num círculo; o jubeu, que ostenta um vistoso rendilhado de pedra branca onde sobressaem padrões vegetalistas e cenas da Paixão; numa das capelas absidiais, o tríptico Colibrant, atribuído a um neto de Rogier van der Weyden (com imagens alusivas à Anunciação, ao casamento de Maria com José e à apresentação de Jesus no templo). A nota de humor procede das criaturas, bizarras e careteiras, que ornamentam as estalas do coro.
No caminho de volta à praça principal, reconhecemos De Fortuin, casa branca enfeitada com um cata‑vento que corporiza Fortuna, a deusa. Em tempos que já vão longe, foi armazém de cereais e carvão, nela funcionaram uma fábrica de limonada e uma marcenaria. As portadas verdes, brancas e vermelhas que resguardam as janelas convertem De Fortuin num dos edifícios mais fotogénicos da cidade.
Em 1930, com o intuito de honrar o centenário da independência da Bélgica, Louis Zimmer, astrónomo amador e relojoeiro, doou a Lier, sua terra natal, um relógio. Os mandos locais instalaram‑no numa torre que fez parte de uma das cintas de defesa do burgo medievo. Os mostradores indicam, nomeadamente, as horas, os dias da semana, os meses, os dias do mês, as estações do ano, as fases da lua e os dias do mês lunar. Nas aberturas superiores de uma fachada da torre Zimmer, autómatos que simbolizam quatro estádios da vida assinalam a hora e os quartos de hora tocando sinetas. Noutro vão da mesma, um mecanismo faz desfilar, ao meio‑dia, retratos dos que, entre 1830 e 1930, foram reis da Bélgica ou presidentes da câmara municipal. Porquanto se encontra no coração da cidade e por ser atrativa para a miudagem, a torre em apreço é sobrevalorizada no cotejo com os restantes chamarizes turísticos de Lier.
No conjunto de imóveis onde funcionou um hospital para desvalidos (em francês, um hôtel‑Dieu), as casitas de tijolo em volta do jardim regalam os apreciadores de harmonia e de proporção. Em edifício que serviu de capela, estavam expostos têxteis de Lier — bordados feitos à mão em tule tecida à máquina — e meia dúzia de trabalhos reveladores da excelência de outra arte que trouxe fama à terra, a arte de aljofarar. Entabulei conversa com um homem, quinquagenário ou sexagenário, que preguiçava defronte de uma casa. Depressa me arrependi. Era oco, tinha maneiras pueris, um riso parvo e fácil denunciador de tontice. Lembrei‑me de Pavese. «Há uma coisa mais triste do que envelhecer: permanecer criança.»[1] Não quero que isso suceda comigo. Antes de falar ou agir, há quem se interrogue:
— Isto fica‑me bem?
— Isto fica‑me mal?
— É classy?
— Mostro inteligência e cultura?
Eu pergunto‑me amiúde se o que vou dizer ou fazer é próprio de homem maduro.
Dirigimo‑nos para o recinto da antiga beguinaria. As beguinas que aí se instalaram em primeiro lugar chegaram em 1258, a última residente morreu em 1994. Sobre a porta‑cocheira da entrada monumental, no nicho do frontão, há uma estátua de Santa Bega, padroeira das beguinas. A seguir, o visitante descobre um complexo pictural cuja graça advém do horizontalismo, das ruas empedradas, da igreja de Santa Margarida e das casas calicromas e em bom estado de conservação (muitas delas são feitas de tijolo). Aqui e ali, flores de malva e de madressilva, hortênsias e dálias aformoseavam o conjunto. O bom conceito da beguinaria de Lier advém do respetivo valor histórico e estético e firmou‑se mercê da sua inclusão, pela UNESCO, na lista do património da humanidade. Divulgando‑a na sua obra, também o escritor Felix Timmermans lhe deu cartaz.
Depois de flanar nessas ruas outrora habitadas por penitentes, fizemos o género de perambulação que preenche algum imaginário romântico, um giro por áleas e calejas justafluviais desertas, por pontões que gerânios brancos e vermelhos alindavam. Sobredourando‑os, a luz do fim da tarde embelecia os tons ocres, reinantes naquelas paragens. Vimos cabeças de carneiro, de jeitos diversos representadas no espaço público. Reza a lenda — não sei se a história o confirma — que, no século xɪv, perante a possibilidade de optarem por ter no seu burgo uma feira de gado ou um claustro universitário, os íncolas de Lier escolheram o vendedouro de reses. Da época vem a sua alcunha: «cabeças de carneiro».
O Brasil é sempre o Brasil, aquém e além‑Atlântico. Perto do pequeno prédio em que está instalada a Igreja Mundial do Poder de Deus, três brasileiras que vestiam trajes exóticos falavam acerca de nenéns. Efusivas, a sua voz rasgava os ares e atravessava a rua. Não é o meu estilo, mas apreciei o contraste — até as avistarmos, tínhamos lidado sobretudo com flamengos contidos.
Jantámos na esplanada do restaurante Rosario. Por mor do meu casco sanitarista, fazia muito tempo que não comia uma piza. Farto da privação, pedi e devorei a mais rica das pizas, guarnecida com fiambre, salame, cogumelos, cebola, pimento, azeitonas, alho‑francês e mozarela. À mesa perto de nós, um francófono alardeava saberes diversos, declinava‑os com vaniloquência. Pretendia impressionar os seus companheiros de repasto, mas fez‑me lembrar que la culture, c’est comme la confiture, moins on en a, plus on l’étale.
Durante a viagem de regresso a Bruxelas, desfiámos vereditos convergentes a propósito de Lier, cidade que tem um património cultural notável e que se presta à passeata romântica, bem longe das multidões que inçam as ruas de Bruges.
[1] PAVESE, Cesare, O ofício de viver, tradução de Alfredo Amorim (Margarida Periquito traduziu os fragmentos inéditos e o apêndice), introdução de Margarida Periquito, Lisboa, Relógio D’Água Editores, 2004, p. 77.