Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor!
1- Em dezembro de 2022, as portas de um dos restaurantes em que melhor comi no torrão luso fecharam‑se definitivamente. Falo d’O Álvaro, na freguesia de Urra. Era um estabelecimento pequeno, governado por um casal, que ganhou fama graças à arte culinária declinada em pitéus como pezinhos de tomatada, lacão assado, bochechas assadas, migas com entrecosto e ensopado de cabrito.
Quando lá fui, o regalório começou com os acepipes, a saber, farinheira, linguiça, entremeada e bolinhos de bacalhau. E prosseguiu com os pezinhos de porco em tomatada, que tinha o apuro certo. O prazer que sentia era de tal ordem que fui tomado pela gula e, embora saciado, pedi dois doces, pão de rala e fidalgo. O vinho era bom, um Casa da Urra tinto, encorpado e com retrogosto longo.
Sede felizes, Álvaro e Maria do Carmo. Um bem‑haja por, durante cinco décadas, terdes posto mesa farta e de caráter.
2- Situada num alto, Alegrete prodigaliza belos panoramas e casario branco, com debruns amarelos, azuis e ocráceos.
A Torre do Relógio, a Igreja de São João Batista e a Capela da Misericórdia formam um conjunto coerente e harmonioso, todas levam pintura branca e costura amarela. A torre e o campanário da igreja, ambos na mesma praceta, têm olhais e são encimados por coruchéus, enquadrados por pináculos. O traço das volutas que enfeitam a frontaria da Capela da Misericórdia sinaliza refinamento que falta na Torre do Relógio e na Igreja de São João Batista.
O castelo foi reconstruído em 1319, por mando de D. Dinis. O povo ergueu o alcácer e, em troca, o monarca deu foral a Alegrete, que destarte se alforriou da jurisdição de Portalegre. Pretendia demorar‑me no castelejo, gozar as vistas. Mas a funçanata que ali decorria abreviou a minha visita. Compreendo que as coletividades locais financiem as suas atividades por via de festas e da venda de comes e bebes, mas aquilo era, para mim, poluição visual e sonora. Ao subir um lanço de escadas, deparei mesmo com uma embalagem abandonada de Nutella.
No Bar dos Amigos, porque eu usava máscara, alguns membros de um grupo de convivas, adultos, provocaram‑me, dizendo que no Alentejo não havia covid, que esta se achava proibida de entrar na região. Pensei que se tratasse de mofa brejeira, mas não tardou que ali percebesse simples espírito jovial e até fraternidade, pois convidaram‑me a tomar lugar junto deles.
3- Desloquei‑me à aldeia de Reguengo com o propósito de apreciar os trabalhos de Emílio Relvas, artista popular, falecido em 2005, que se servia principalmente do canivete e deixou mais de mil obras de madeira. O arrumo da mostra obedece a divisão em quatro temas: bestiário fantástico, imagens de Cristo (Menino Jesus, presépios, Crucifixão…), imagens da Virgem Maria e dos santos (como São Mamede, santinho do altar de Emílio Relvas), quotidiano e festa (as peças representam, por exemplo, adornos e utensílios domésticos, animais de criação, gente a tocar instrumentos musicais ou a exercer o seu ofício).
Há conjuntos grosseiros e sobeja a ingenuidade, mas tocou‑me o cariz telúrico e o uso de recursos simples, como os galhos, para criar composições tão diferentes entre si.
A generosidade de Carla, funcionária da junta de freguesia, ainda me brindou com uma visita à Igreja de São Gregório Magno, onde vi o que creio nunca haver visto antes, uma pintura evocativa de Santo António e do milagre do burro, que, conquanto faminto, ignorou a forragem e se prostrou perante a custódia com a hóstia consagrada.