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Em Bruxelas, os melhores doces de inspiração lusa são os da confeitaria Garcia (é quase mítica a reputação dos pastéis de nata que ali se fazem). O respetivo dono é um alentejano de bom jaez, a sua simpatia ombreia com as artes culinárias de que dá mostras. O atavio do salão de chá traz à lembrança o Alentejo. A maioria das casas de comes e bebes portugueses na capital da Bélgica é irritantemente má, revela pouco critério e nenhuma imaginação. Entre as que merecem visita, conta‑se a dita pastelaria.
Na pausa do teletrabalho, fui lá apanhar ares da pátria. E eles acometeram com força, desde logo nos pedidos de «um cafezinho» e nos votos de «saudinha», nos semblantes que denotavam renúncia, nas conversas que se esgotavam em lamúrias.
Depois de tomar a bica, recebi telefonema de uma senhora que trabalhou no meu apartamento de Coimbra e da qual não tinha notícias havia mais de quinze anos. Desconhecia o meu número de telemóvel, ligara para casa de família e pedira que lho dessem. Tersa e generosa, pretendia certificar-se de que eu estava bem. A conversa foi franca, senti‑me afortunado (por norma, as pessoas da minha vida pregressa só me contactam quando precisam de favor, socorro ou facilidade).
Um circunstante referiu‑se a J., elogiou a sua gentileza e maneiras lhanas. Mantivera trato profissional com J. no tempo em que este desempenhava função pública de relevo. Conheci J. antes do exercício desse múnus, lidei com ele ao longo de alguns anos. Sempre o ouvi falar de verga alta, cismava do seu suposto fastígio, evidenciava uma besonha doentia de receber rapapés, era para mim sinónimo de imodéstia e de quebra de solidariedade (a léguas do que proclamava). Um indivíduo assomadiço, incapaz de se rir de si próprio.
Disse com os meus botões: afinal, J. representa um tipo corriqueiro, composto por gente túmida e de mau feitio que, alcandorada em ofício público de destaque, desintumesce e muda de máscara.
Longe de tal tipo se achava Fernando Rocha Andrade, professor universitário que morreu em fevereiro. Era meu amigo, sinto interditos ao escrever acerca dele. Mesmo assim, deixo nota de um homem generoso, solidário, bem‑humorado, culto, inteligente e capaz. Sabia muito de economia e finanças, exerceu cargos públicos relevantes, nunca teve penacho. Falava de forma igual com o príncipe e com o mendigo. A sociedade dos nossos dias — e, em particular, o meio académico — sublima o do ut des, o sinalagma. Não era esse o vezo do Fernando. Sit tibi terra levis, caro amigo.