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Afinal o que importa não é haver gente com fome
Que assim como assim, ainda há muita gente que come
A pastelaria, de Mário Cesariny
A minha filha, no outro dia disse ao jantar, que na escola dela alguns colegas franceses vieram a saber que ela é portuguesa. E tão certinho como dois e dois serem quatro, saíram-se logo com as piadas sobre construção civil. Nomeadamente, perguntaram-lhe se ela depois das aulas ia assentar tijolo ou colar azulejos. O que me chateou profundamente. São os homens portugueses que trabalham nas obras, enquanto elas têm bigode e fazem limpezas. Se é para gozar com estereótipos, pelo menos que o façam como deve ser. É por isso que têm que ser os portugueses a trabalhar nas obras em França, porque se estes franceses nem a fazer piadas são profissionais então é melhor mesmo que se abstenham de trabalhar na alvenaria.
Piadas à parte, a minha filha obviamente não ficou incomodada com os comentários. Mesmo sabendo que os seus avós, e bisavós, tenham efectivamente sido maçons em França. E até, que passaram pelos bidonvilles nos primeiros meses após a chegada ao hexágono. Não há vergonha nenhuma em fazer trabalhos duros, ou em ter conhecido a miséria. E penso mesmo que a larga comunidade portuguesa em França não só sente o mesmo, como são mesmo os primeiros a gozar com isso.
Parecendo que não, esta história está relacionada com a excelente conversa entre a Isabel Moreira e o José Maria Pimentel no meu podcast preferido, o '45 Graus'. Concorde-se ou não com as ideias da Isabel, e eu tendo a concordar com boa parte mesmo não sendo de esquerda, ela argumenta bem o lado dela. Mas onde eu definitivamente estou em desacordo é quando ela fala do privilégio do homem branco.
Primeiro que tudo, eu discordo mesmo da utilização deste tipo de categorias. Sim é perfeitamente possível categorizar pessoas com base nos seus atributos físicos, filiação partidária e cultural. Mas esse tipo de construção é perfeitamente arbitrária, por um lado, e por outro necessariamente incompleta. Cada indivíduo vale por si e não pelas etiquetas que terceiros lhe colaram. Ademais, não há etiquetas que cheguem para classificar um indivíduo. Eu sou português ? Sim, mas dificilmente se pode dizer que penso e ajo da mesma forma que os outros 10 milhões. Sou homem ? Sim, mas para além da pilinha pouco mais tenho em comum com os outros 4 bilhões de homens no planeta. Sou branco ? Bom, isso já depende do local. Em Lisboa sim, em Bruxelas passo por magrebino. E por aí em diante. Teorias sociais com base na atribuição arbitrária de etiquetas são absurdas, e muito pouco sólidas. Mudem-se as etiquetas e as teorias caem por terra.
Mas joguemos o jogo com essas regras. Qual é exactamente o meu privilégio como homem branco ? Tive a sorte de nascer no tempo e no local certos. Se tivesse nascido 50 anos antes teria nascido numa ditadura, num dos países mais pobres da Europa. Teria a hipótese de ir à escola, mas não era garantido, e universidade só a da vida. E aos 20 tinha duas viagens à escolha, um salto até França ou uma ida de barco até África para andar aos tiros. A Isabel Moreira pode argumentar que os portugueses em África, na época, eram privilegiados em relação aos negros autóctones. O que é correcto, mas se se pode dizer que na época colonial um homem português branco em África era um privilegiado, a mesma categoria em Portugal não garantia privilégios. A não ser que se entenda viver numa barraca e trabalhar duro nas obras como privilégios. E nem é preciso ir até França, basta ver as fotos do padre Telmo Ferraz sobre as condições miseráveis em que viviam os trabalhadores que construíram a barragem do Picote. A mesma categoria, homem branco português, e realidades completamente distintas. Argumentar que esta é uma categoria de privilegiados é pura e simplesmente desonesto.
No entanto, é difícil de não concordar com a Isabel na observação de que uma parte significante da população mais pobre em Lisboa e arredores partilha o mesmo tom de pele. O que me separa da Isabel, é que ela olha para a linha de Sintra e vê categorias (negro e pobre vs branco e rico) e foca-se no tom de pele como justificativo para as diferenças. Eu, por outro lado, reconheço imediatamente os mesmos padrões de pobreza que vi em Pombal. Se dificilmente se muda a pele com que se nasceu, já a pobreza deveria ser outra história. O que está errado em Portugal não é existência de pobres de todas cores e feitios, mas sim a tremenda dificuldade em se sair da cepa torta.