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A Jūratė cometeu‑me tarefa agradável — conceber o programa do seu dia de anos. Fez‑me apenas um pedido: nele incluir a visita ao museu Paul Delvaux, em Santo Idesbaldo, no litoral belga. Pus o maior empenho na execução do encargo. Matutei nos seus gostos e nos que temos em comum, consultei a internet e guias de viagem, inquiri a meteorologia, projetei variedade. Para além das obras de Delvaux e do que viesse de modo espontâneo, a jornada compreenderia, segundo o meu plano, uma ida à praia de Oostduinkerke com o propósito de assistir à pesca de camarão feita a cavalo e também a passagem por dois templos de feliz traço arquitetónico, a saber, a igreja de São Nicolau (ainda em Oostduinkerke) e a igreja de Nossa Senhora das Dunas, em Koksijde. Coronafóbico, não curei de primores gastronómicos, o almoço teria lugar numa qualquer esplanada onde estivesse pouca gente e fossem servidos comes e bebes.
Em Oostduinkerke, a costa é um biótopo de camarão‑negro. Arrolada na lista de património cultural imaterial da humanidade, da UNESCO, a pesca equestre de camarão não se pratica em mais nenhum ponto do mundo. Os pescadores vestem roupa oleada, por norma amarela, adentram‑se no mar com cavalos de tiro, brabantinos ou das Ardenas, e deslocam‑se até à zona em que a água chega ao ventre dos equídeos. A pouca profundidade do mar e a ausência de molhe e doutras barreiras facilitam a circulação de humanos e animais. As redes desenham forma semelhante à de um funil e mantêm‑se abertas graças a duas pranchas de madeira. A fricção da areia com correntes produz vibrações que levam o crustáceo a saltar e a ficar preso na rede. No fim, deita‑se o pescado numa peneira e, depois de rejeitar o caranguejo, o pequeno peixe e a alforreca, despeja‑se o que interessa, o camarão‑negro, em baldes que estão nos cestos de verga (sobre os costados do solípede, esses balaios haviam contribuído para cravar no espírito as imagens da pescaria). A presença de dezenas de mirones não me causou espanto, pois as autoridades responsáveis pelo turismo divulgam com antecedência o horário em que, nos meses de estio, os pescadores saem para o mar com as suas montadas.
O traje das nadadoras‑salvadoras que andavam pela praia era lindo e capaz de dar garbo a quem por natureza ou preparo o não tem: blusão e calções vermelhos de corte irrepreensível (imaginei que aquele cobrisse uma t‑shirt, igualmente de bom talhe). O logótipo do patrocinador, uma firma de seguros, não roubava elegância ao conjunto. Já grande parte dos transeuntes que vimos em Oostduinkerke era mal‑apessoada, falha de critério e de gosto no trajar. E também são feios os imóveis próximos do ponto em que a avenida Leopoldo II entesta na linha costeira. Aí, entre muita edificação, no meio do desarranjo estético, só duas obras servem de bálsamo para a vista e para o espírito: Viúvas negras, escultura de Kenny Cotman, e a Zomerkapel, despretensiosa igreja com paredes brancas e telhado cerâmico de duas águas. A primeira parece ter uma só cor e ser feita de um só material, escolhas ideais para peça vizinha de mamarrachos. A igrejola, aberta ao culto em 1927, é um anacronismo (digo‑o sem salpico de carga negativa). Erguida por solicitação dos fiéis que ali veraneavam e não queriam deixar o lugarejo a fim de assistir à missa, faz pensar na evolução dos tempos, das devoções e das mentalidades. Hoje, com tanto ateu e tanto povo que, não o sendo, menoscaba o preceito divino, duvido que os vilegiaturistas o pedissem.
Cheios de fome e com visita reservada, daí a duas horas, no museu Delvaux, parámos para almoçar na esplanada do restaurante De Kruier. Gostámos dos mexilhões, da solha, da cerveja tradicional belga. Em razão da crise sanitária e do teor da conversa, que incluiu balanços e perspetivas, agradou‑nos que ninguém se tivesse amesendado por perto.
O museu Delvaux funciona numa casa de Santo Idesbaldo que o pintor nunca habitou. Ainda assim, a eleição do sítio obedeceu a bom juízo — Delvaux passou temporadas nessa terra e, na fase final da vida, morou em Veurne, a poucos quilómetros de Santo Idesbaldo. Os quadros expostos revelam as correntes que Delvaux seguiu ou que o influenciaram: o realismo, com trabalhos d’après nature, e algum influxo do impressionismo; o expressionismo (acolheu ideias de Constant Permeke, Gustave De Smet e James Ensor, exteriorizou sentimentos através da arte); o surrealismo. Repete‑se a presença da Antiguidade Clássica e de temas e figuras de relevo para Delvaux — comboios e estações ferroviárias, esqueletos e mulheres, que, sem remeter apenas para o simbolismo erótico, amiúde pintou nuas ou seminuas. Hábil na representação do sexo feminino, o artista distinguia‑o com fisionomias delicadas e olhos escuros amendoados. É curioso haver expressões de alegria nos esqueletos e olhares distantes nas mulheres.
Em prejuízo do puro mérito, os responsáveis do museu mostram a vida como ela foi e exibem trabalhos que Delvaux realizou na velhice, condicionado por problemas de saúde. O que se perde em lustro artístico ganha‑se em humanidade e no tributo ao prazer de criar.
Havia uma exposição temporária de cópias dos frescos, repletos de motivos da Antiguidade Clássica, que Delvaux pintou na sala‑biblioteca e num mezanino da casa de Gilbert Périer, nessa época presidente da companhia aérea Sabena. Abstenho‑me de discutir o valor da obra original. Creio, porém, que com ela o adorno da sala sobrepesava, quase oprimia. Receio cair no moralismo, mas assinalo que, neste mundo onde abunda o desvalido, é incomodativo o uso que dão ao dinheiro alguns dos que em excesso o acumularam; penso, por exemplo, nas viagens espaciais há pouco tempo levadas a cabo por milionários, empresas faltas de proveito para a ciência e para a humanidade.
A excursão continuou na moderna igreja de Nossa Senhora das Dunas, em Koksijde, com justeza nomeada «catedral da luz». O bege das paredes sugere a cor da areia e o telhado chama o mar: é azul e ostenta uma parte elevada cujas formas arremedam duas ondas que quase se entrebatem. No amplo corpo da igreja, que desenha um semicírculo, encontra‑se o sepulcro de Idesbaldo, outrora monge, chantre e abade na congregação local. Enquanto peças de arte, merecem encómios os vitrais, as esculturas de bronze que ilustram cenas da Paixão e o tríptico Da cruz à ressurreição, pintura na qual um jogo de cores e cruzes conduz o observador, da caligem e do sofrimento à luz e à revivescência. O autor do tríptico, Bert Verstraete, teve um acesso de beletrismo e redigiu texto que aspira a poema e acompanha a obra. A melúria que o carateriza só prejudica a reputação de Verstraete.
Apreciei, em especial, a luminosidade no interior do templo (nomen est omen), as vistas desimpedidas para o altar, o despojamento e a pureza da escultura que representa Nossa Senhora das Dunas. Criação de uma freira, Brigitte Loire, e feita de pedra de Lavoux, ela sublima o bom gosto e a harmonia que reinam na «catedral da luz».
Voltámos a Oostduinkerke para visitar a igreja de São Nicolau. Estava fechada e tivemos de nos contentar com a observação de exteriores. Ainda assim, não demos o tempo por malgasto: passeámos num complexo monumental interessante e denotador de revivalismo gótico. Nele avultam a igreja e o campanilo com aparência maciça de cuja fronte pende um grande crucifixo de terracota; a separá‑los, um períbolo ladeado de galerias com arcos e aformoseado com relva, cinerária, begónias e flores que não sou capaz de identificar.
Nas vizinhanças da igreja de São Nicolau há um supermercado e uma pastelaria, a Gheysen. Comprámos um bolo, champanhe, velas e fósforos e continuámos os festejos merendando nas dunas que beiram a praia de Oostduinkerke, rodeados de espargo e de tasna. Só gosto de celebrações a dois ou en petit comité, senti‑me bem. No dia seguinte completar‑se‑iam 13 anos sobre a data em que conheci a Jūratė. Por graças da serendipidade, na embalagem do bolo via‑se escrito «Love at first bite», eis um acaso que nos fez sorrir.
A tarde aproximava‑se do fim, o cansaço pesava‑me. No intuito de marcar contraste com o que se recebe da orla costeira, havia proposto, horas antes, uma passeata em Veurne, terra representativa do país que conhecemos melhor, o país das grand‑places, dos edifícios antigos, das empenas em degrau. A Jūratė mostrou vontade de lá ir e, apesar da fadiga, anuí — empatia e desejo de agradar, assim se declina o amor. Sucede que, às vezes, a estafa desvaira‑me. Foi isso que aconteceu e, já no giro por Veurne, já na viagem de regresso a Bruxelas, pisei a raia da má‑criação. A Jūratė conhece‑me e relativizou‑o, aquilo nem chegou a ensombrar o dia. Mas a jornada favorável a todo o gesto afirmativo avivou afinal a importância de dizer «não».