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Gosto de visitar cemitérios. Entre outros, recordo: o de San Fernando, em Sevilha, e a expressão pungente de homens, mulheres e crianças numa escultura de bronze sob o ataúde de Joselito, toureiro; o de Reina, em Cienfuegos, verdadeira gliptoteca com magníficas estátuas de mármore que são obra de mestres europeus contratados pelos barões do açúcar; o de Highgate, em Londres, e assinalo o jazigo de Karl Marx — autor cujas teorias ensinei aos meus alunos de Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra — e o de Patrick Caulfield, no qual as letras da palavra «DEAD» trespassam a lápide e deixam circular vida; o cemitério alegre, em Săpânța, onde as campas têm, no lugar da lápide, uma bizarra escultura de madeira (policroma, mas o azul sobressai), com epitáfio alusivo à biografia da pessoa que morreu ou à causa do decesso, a sua imagem em baixo‑relevo e, no topo, uma cruz encimada por duas barras dispostas na diagonal. A propósito do cemitério romeno, Antonio Tabucchi reporta um «anti‑Spoon River que não aspira à tragédia grega como o poema americano de Edgar Lee Masters, mas se contenta com a pequena comédia quotidiana que faz parte da vida normal»[1].
Em Bucareste, atraído pelo sepulcro de Iulia Hașdeu, apanhei um táxi para ir ao cemitério Bellu. Supostamente edificado de acordo com instruções que a defunta enviou do além, o túmulo inclui um relógio com ponteiros que pararam na hora do seu traspasso e um globo de mármore branco que representa a Terra e no qual se distinguem os lugares que Iulia visitou. Naquele fim de semana realizava‑se um referendo que, se viesse a ser vinculativo — por ter a participação de pelo menos 30 % dos eleitores e no mínimo 25 % de votos válidos — e a surtir o triunfo do «sim», levaria a reconhecer apenas o casamento entre um homem e uma mulher e tornaria inconstitucional o matrimónio entre pessoas do mesmo sexo. Curioso, pus-me a conversar com o motorista.
— Já votou no referendo?
— Vou fazê-lo amanhã.
— Em que sentido?
— Vou votar «sim», um casal composto por dois homens ou por duas mulheres não é normal.
— Não lhe parece injusto e discriminatório impedir que, por causa da orientação sexual, certas pessoas tenham acesso a algo tão bonito e relevante como o casamento?
— Não, um casal gay não é normal.
— Como assim?
— Se os homossexuais querem casar devem ir para a Alemanha ou para a Holanda, lá isso é comum, aqui não.
— O que diz é injusto e oposto à razão. Sabe que ser homossexual não é uma escolha? É algo inato. E, ainda que se tratasse de uma opção, seria algo a respeitar.
— Mas neste país não é normal, pode sê-lo na Alemanha ou na Holanda, não na Roménia.
Em frente da entrada do campo-santo paguei e, com sensação de impotência, despedi‑me do burgesso. No repenique do seu telemóvel, adivinhei chamada das trevas. Veio‑me à memória um colega de curso que, perante a possibilidade de ter casa ao lado de um cemitério, me disse que não receava os mortos; tinha, isso sim, muito medo dos vivos.
[1] TABUCCHI, Antonio, Viagens e outras viagens, tradução de Maria da Piedade Ferreira, 1.ª edição, Alfragide, Publicações Dom Quixote, 2013, p. 64.