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A zona central da Figueira da Foz, perto do mar e bordejada pelo rio, tem múltiplos pontos de interesse e casas de boa comida. De lá trouxe um alforge de apontamentos.
Passei uma manhã no Mercado Municipal Engenheiro Silva, edifício rosa de estrutura horizontalista. No pátio central predomina a transação de peixe, marisco e hortofrutícolas. A afluência era grande, mas sempre senti desafogo. Como é próprio da sociedade da eficiência e do despacho, os vendedores eram pragmáticos: serviam os clientes e não tinham paciência para o simples curioso. Não ouvi pregões. As peixeiras eram mulheres de armas, mas faltava‑lhes o fervor e o modo vivaz das suas congéneres do Norte de Portugal. Vi peixe que desconhecia — cantaril, pata‑roxa e azevia —, impressionou‑me o tamanho de alguns robalos. Como é normal numa terra que tão bem os leva à panela, não faltava oferta de samos, cachaços, caras e línguas de bacalhau. Quanto às flores, tomei nota de rosas, cravos, orquídeas, antúrios e gerberas.
A Casa do Paço foi construída no final do século xvɪɪ e no início do século xvɪɪɪ por ordem de D. João de Melo, bispo‑conde de Coimbra. Fascina pelos milhares de azulejos que decoram as paredes de salas do andar nobre. Trata‑se de azulejos de figura avulsa, do início do século xvɪɪɪ, produzidos em Roterdão, mas segundo o cânone de Delft. Não se sabe como vieram parar à Figueira da Foz. Consoante me disse Jacqueline Couto, a guia que também me deu uma lição de história, um navio holandês deparou‑se com uma tormenta e tomou abrigo no porto figueirense ou, caso igualmente verosímil, foi instado por embarcações portuguesas a atracar. Poderia referir outras explicações, por essas duas me quedo.
As lambrilhas, todas com fundo branco, obedecem a três modelos. Primo, as que, em pintura azul, reproduzem cenas e paisagens de vária índole. Secundo, aquelas que, em tons cinzentos e acastanhados, dão a ver figuras que, em poses diversas, montam a cavalo. Tertio, aqueloutras que, igualmente em tons cinzentos e acastanhados (salvo dois espécimes pintados de azul), representam episódios bíblicos.
No relevante, o edifício da Igreja de São Julião data dos séculos xvɪɪɪ e xɪx. A respetiva fachada não seduz. Desgostei, em particular, do frontão recuado relativamente às torres sineiras.
Já no vestíbulo, animou‑me um afixo no qual, de forma palmar, se incentivava ao testemunho aqueles que, na infância ou na adolescência, houvessem sido alvo de abusos sexuais por parte de membros da Igreja Católica. Para as vítimas, para a sua aquietação interior, é importante ter voz e sentir que, finalmente, se caminha no sentido de pôr termo ao miserável encobrimento de casos de pedofilia no aprisco da Igreja portuguesa. Lastimo que, depois de divulgadas as conclusões da Comissão Independente para o Estudo de Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa, esta dê mostras de que gostaria de continuar a viver em manhã submersa.
Volto à Igreja de São Julião e assinalo o retábulo pétreo, do século xvɪ, que se encontra na capela do lado do Evangelho e, pela associação à terra, a pintura de frei Inácio da Silva Coelho Valente na qual Nossa Senhora vela por quem navega nas águas bravas da Figueira da Foz.
Na casa senhorial da Quinta das Olaias, andei por aposentos de belo atavio e, punctum saliens da visita, concentrei‑me na exposição de João Reis, paisagista que com destreza retratou o universo piscatório de Buarcos. Os óleos O cantador de Buarcos (1935), Pequena de Buarcos (1940) e Mulheres do mar (1942) chamam à terra e enchem a alma.
No Núcleo de Arte Contemporânea Laranjeira Santos, afemencei o olhar diante das esculturas com formas espalmadas. Laranjeira Santos utilizou espuma de poliuretano, fibra de vidro e resina de poliéster em Ela ainda não sabe que ele é gay, de 2002, Ela continua indiferente, de 1998 — criações nas quais a matéria se torna linguagem que explicita o que vai dito no título da obra —, e também na Conversa infrutífera, de 1994, e em Blá blá blá, de 1995, que são alegorias do nosso tempo, fértil em diálogos de surdos e em logorreias, intimidatórias ou não.
Diverso é o registo em Expetante, de 1956, escultura de cimento em que o mesmo artista apresenta uma mulher em sugestiva pose de observação e de espera (as mulheres têm papel de relevo na obra do autor).
O Museu Municipal Santos Rocha exibe arte sacra, etnografia, arte moderna, armaria, numismática, arqueologia e uma coleção de móveis e de objetos decorativos indo‑portugueses. Para lá foram transferidas as telas de João Reis que vi na Quinta das Olaias. No museu, aprouve‑me, em particular, a graça naïf dos ex‑votos, penhores de valimentos em matéria de doenças e, como se espera na Figueira da Foz, de percalços no mar.
Poderia dizer que, nos restaurantes Caçarola 1 e Caçarola 2, comi que nem um rei. Mas prefiro afiançar que papei como um português, que me deliciei com a cozinha lusa e ajustei tréguas com um mal de que sofro na Bélgica, a gastronostalgia.
Da decoração do Caçarola 1 ressaem os silhares de azulejos azuis e brancos e ainda os quadros e os painéis cerâmicos alusivos ao mar, à pesca e ao sal. O Caçarola 2 aponta para o instalado na vida e tem adorno quase padronizado. Nele vi pouco cotovelo em cima da mesa e não dei por gente que falasse enquanto mastigava.
Tanto os empregados de uma casa como os da outra são afáveis e põem brio no atendimento. Ambas servem excelente pitança e boa pinga. Do Caçarola 1, recordo a sopa de grão‑de‑bico, a sopa de espinafres, o caldo verde, o peixe fresco grelhado, as sardinhas assadas, o arroz de lampreia, o sável frito com açorda, as enguias fritas com arroz de tomate, o arroz de cabidela, o pato com laranja, o cabrito assado à moda da Bairrada e dois pitéus que nunca havia provado: arroz de sardinhas e massada com bacalhau e gambas. Verdadeiro regalo trófico. Do Caçarola 2, menciono a cavala escalada, os filetes de linguado com arroz do mar (inclui canivetes e miolo de camarão), o arroz de cabidela e os bifes. As listas de sobremesas são vastas, satisfazem o palato dos doceiros e o dos que optam pela fruta. Nestes dois restaurantes nunca tive azar, nunca de lá saí malcontente.
Saúdo igualmente a manja e o parecer, moderno e de bom gosto, do Olaias, e a ressurreição do Carrossel, pouso com pergaminhos gastronómicos. O Picadeiro deixou‑me má memória: um arroz de cabidela servido com galináceo de fraca qualidade e arroz a precisar de cozedura. Por causa das maneiras do seu responsável, abandonei o Cataventos pouco depois de me ter sentado. Como pode o estaminé desse homem ter clientes? Na restauração de Bruxelas há muitos gerentes do seu jaez, mas no setor dos comes e bebes da Figueira da Foz predomina a simpatia e o bom serviço.
No Caçarola 1, travei conhecimento com Yvonne Landry, atriz e produtora norte‑americana. Contou‑me o que eu já sabia. Nos Estados Unidos, cresce o fosso entre a minoria rica e a multitude pobre, a divisão política e social traz inauditos azedumes. Numa fase em que sentia orgulho patriótico e associava charme ao Sul dos Estados Unidos, foi buscar os nomes dos filhos à geografia dessa grande região: Claiborne, Evangeline e Savannah. Mas a benquerença tinha expirado, para Yvonne era apenas memória.
Na Livraria Miguel de Carvalho fiz safras interessantes. Registo Portugal de relance, de Maria Rattazzi. A autora visitou Portugal no último quartel do século xɪx e traçou na obra um quadro nada favorável acerca do país e dos seus íncolas. Curiosa polaridade: calhou ler esse livro num momento em que viajava pelo país e com ele vivia uma lua de mel. Realço Luz/Negra, de Luís Rainha, livro hodierno, pleno de espirituosidade fina, muito bem escrito, com destro uso da metáfora e divicioso vocabulário. Os dois enredos com o mesmo protagonista forçam o leitor a manter com o livro uma relação, não apenas um caso. Luz/Negra é esmerada armação que recomendo ao leitor cadimo.