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Passear na Guarda foi um prazer: almas simpáticas, poucos turistas, património chamativo e bom trato do granito, sol e ares saudáveis (ela é «Cidade Bioclimática Ibérica»).
Se aqui deixasse registo diarístico das nossas jornadas nessa capital de distrito, incorreria em particularização passível de maçar o leitor. Opto por referir aquilo que em mim cravou sinal.
Desde logo, o centro histórico, o que ele liberta de medievalidade, e também o que resta da judiaria e do sistema defensivo do burgo. Cumpre realçar, nas primícias do desenvolvimento da Guarda, o primeiro foral, outorgado por D. Sancho I em 1199, e a transferência da sede do bispado egitaniense para a cidade, no início do século xɪɪɪ.
As delicadezas do gótico e do manuelino temperam o ar massudo da Sé Catedral, imóvel de granito cuja construção começou em 1390 e terminou no século xvɪ. Depois dessa centúria, ele foi alvo de diversas obras de alteração e de restauro.
Na frontaria, avulta um par de torres sineiras, de corpo octogonal e coroadas por merlões, que ladeiam um pano central onde se inscreve um óculo circular e um portal manuelino que rompe a sobriedade dessa face do templo. Da fachada que abre para a Praça Luís de Camões, saliento, pela beleza, o portal gótico e o janelão manuelino da parede do transepto. Mas o que me caiu no goto foram duas preciosidades do interior da sé, a saber, o retábulo da capela‑mor e a sepultura de D. João Pina.
A capela‑mor tem façanhoso retábulo de pedra de Ançã. As fontes que consultei imputam a sua autoria a João de Ruão ou à escola dele. Dividido em quatro registos, cuja área se encontra seccionada por colunas e por pilastras, exibe trabalho escultórico que representa, designadamente: os bustos dos apóstolos; Moisés, Ezequiel, Elias e Daniel, a Anunciação e a Natividade; a Virgem, rodeada de anjos, Isaías, David, Jeremias e Zacarias, a Adoração dos Reis Magos e a Apresentação de Jesus no Templo; o dramatismo da Paixão.
A Capela dos Pinas, do século xvɪ, abriga, em arcossólio, o túmulo de D. João de Pina, tesoureiro da catedral. Da escultura do jacente, que veste traje clerical e parece dormir, ressai naturalidade e correção de formas.
A Igreja de São Vicente é produto da reconstrução setecentista de outro edifício. Tem exterior despretensioso, aqui a chamo em virtude do que se vê lá dentro.
Os retábulos, o principal e os colaterais, de talha dourada e policroma, são bonitos, mas o que fixa a atenção são os painéis de azulejos, atribuídos a Sousa Carvalho (pintor de azulejo que trabalhava em Coimbra). Azuis e brancos, bordados por molduras de rica decoração — nas quais se recorre a mais cores —, obedecem ao seguinte programa decorativo: na capela‑mor, recriam passos da Paixão; na nave, episódios da vida de Maria; no batistério, o lavacro.
Já na Igreja da Misericórdia, de estilo barroco, encantou‑me a fachada principal e, nesta, a simetria e o contraste entre a brancura da cal e os tons da cantaria. Sob frontão curvilíneo, o pano único, balizado por pilastras, está ligeiramente avançado em relação às torres sineiras e expõe rico eixo central — ladeado por duas janelas de avental —, com nicho que abriga a imagem da padroeira, Nossa Senhora da Misericórdia, e portal de arco abatido que represa, no tímpano, a pedra de armas de D. João V. As torres sineiras, guarnecidas de balaustrada e de fogaréus, são encimadas por coruchéus e reforçam a elegância do conjunto, dando‑lhe aparato.
Prossigo com as formas que despertaram o meu interesse, dou um salto no tempo e aterro no século xx, no imóvel de gaveto que Cristino da Silva projetou para a Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência. Não subjuga a vista, mas é provocador: um bloco de aparência maciça — com dois portais de granito em cuja parte superior volutas e pináculos flanqueiam uma cartela — que se estende por via de duas alas, cada uma delas dotada de colunata.
O que eu não entendo é como pode alguém gostar do edifício, concebido por João Paciência e operativo desde 1993, onde está instalada a sede do município. Mirei‑o e remirei‑o, só consegui enxergar um mamarracho, um mono com a torre do relógio mais feia que já vi.
Na Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço, inaugurada em 2008, eu e a Jūratė andámos por espaços de leitura luminosos e bem organizados e, cereja no topo do bolo, entregámo‑nos a um revivalismo que muito nos agradou: visitámos a exposição A face dos livros, com material do arquivo Ephemera, que versava sobre capas de livros ilustradas por artistas portugueses no século xx. Eis o livro enquanto fonte de regozijo para a vista, eis a capa como mecanismo de sedução do leitor.
Em decorrência da aplicação dos adjetivos «fria», «forte», «farta», «fiel» e «formosa», a Guarda é conhecida por «cidade dos cinco efes». Mercê de Imagem & Território, evento periódico, talvez se lhes possa juntar um sexto efe, o de «fotografia».
Fomos ao Hospital Sousa Martins com o intuito de aí ver a mostra Pessoas, lugares, outros olhares, integrada na sexta edição do dito evento. Compunham‑na fotos de valor, tiradas em várias partes do mundo, mas, pecado capital, não havia nenhuma informação acerca dessas imagens, nem sequer a identificação dos respetivos autores e isso deixou‑nos frustrados.
Vagueámos pelo parque do hospital, que, apesar dos carros ali estacionados, ainda mantém recantos agradáveis. A Guarda beneficiava de condições climatéricas favoráveis ao tratamento da tuberculose e, em grande medida na sequência dos esforços e do saber de Sousa Martins, médico, aqui foi aberto, em 1907, um sanatório, que contou com o patrocínio da rainha D. Amélia (note‑se que o esculápio morrera em 1897). Mais tarde, a tuberculose deixou de constituir um problema grave de saúde pública e o sanatório deu lugar a um hospital com múltiplas valências.
Sousa Martins foi canonizado pelo povo, impressionou‑nos a quantidade de flores e de ex‑votos colocados ao pé do seu busto, no recinto do parque.
Volto à edição de 2023 de Imagem & Território a fim de dizer que Memoria en la raya, de Victorino García Calderón, foi a mostra fotográfica da minha predileção. Denotava cariz humanista e topográfico, compreendia imagens de pessoas, animais, objetos e lugares, em Portugal e na Espanha, em zonas próximas da fronteira entre os dois países, na segunda metade do século xx e no século xxɪ.
Para além da qualidade das imagens, todas a preto e branco, e da desenvoltura do autor ao lidar com profundidades de campo diversas, vi um manifesto, um manifesto contra o esquecimento, a desertificação humana e o abandono das infraestruturas ferroviárias.
Acredito que muitos jovens gostariam de viver no interior, longe da confusão das cidades. No entanto, deparam‑se com a falta de recursos, por exemplo em matéria de saúde e de educação, e com a inflexibilidade de entidades e organismos patronais — teimam em não aceitar que, no respeitante a um grande número de empregos, o teletrabalho a tempo inteiro é viável.
Saímos satisfeitos d’O Ferrinho e do Belo Horizonte. Sou capaz de salientar o arroz de pato com laranja do Belo Horizonte, mas o que trago no espírito é a filosofia, o pragmatismo de Maria, que comandava as operações nesse estaminé e era senhora de 63 anos de experiência na restauração: ali, tratavam bem toda a gente, pois «o dinheiro do cavador é igual ao dinheiro do doutor».