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Ançã, terra natal de Jaime Cortesão e de Augusto Abelaira, é povoação antiga, já existia na época romana. Recebeu foral, de D. Manuel, em 1514. Deve a maior fatia da sua notoriedade à matéria lítica, fácil de talhar, saída das pedreiras da região. A escola coimbrã de escultura ficou a dever‑lhe muito.
Liliana, a senhora simpática e competente que nos acolheu no posto de atendimento turístico de Ançã, mencionou os três bolos típicos da vila, a saber, o bolo fino, próprio do período pascal, o bolo de cornos — tem forma que os sugere e sabor a canela — e o bolo de Ançã, iguaria seca e adocicada que leva farinha, açúcar, ovos e manteiga. O bolo de Ançã é retirado do forno de lenha, ganha arranjo em jeito de crista, e é lá posto de novo até terminar o processo de cozedura. A boleira que os apresentava num açafate, eu e a Jūratė comprámos um bolo de Ançã e um bolo de cornos (quanto ao último, honni soit qui mal y pense).
Guiados por Liliana, demos uma volta, tomámos ares de terra cuidada e estimada. Vimos o Paço do Marquês de Cascais, o pelourinho, o solar da família Bandeira Neiva, os frescos da Capela do Senhor da Fonte e ainda a Fonte dos Castros, cujas águas alimentam a piscina de Ançã. Visitámos o Museu Etnográfico do Grupo Típico de Ançã e o Moinho da Fonte (continua a funcionar, mormente para fins pedagógicos e de confraternização).
O museu foi instalado numa casa de dois pisos, o térreo e o que lhe está sobreposto. Tradicionalmente, no rés do chão desse género de casas havia uma loja ou animais — eles, e os seus excrementos, constituíam fonte de calor para quem estava no andar de cima. Entre os ressaibos das atividades que ocupavam os locais, contavam‑se debulhadoras de milho. Para as peregrinações, as mulheres transportavam cestas de verga com comida e os homens levavam cabaças com vinho. Quando a nossa cicerone nos mostrou tais artefactos, ocorreu‑me perguntar‑lhe pela subsistência do machismo na Ançã do presente. E gostei de ouvir a resposta: «As mulheres de Ançã são muito assertivas, não se calam.»
Conhecedora dos ritos, Liliana falou‑nos do convite para casamento que era feito mediante oferta de bolo de Ançã, bolo de cornos e arroz‑doce, usado para barrar aqueles.
Antes de deixarmos a localidade, eu e a Jūratė ainda visitámos a Igreja Matriz de Ançã, consagrada a Nossa Senhora da Expetação, e a Capela de São Sebastião.
As formas da igreja resultam das obras, promovidas pelo bispo‑conde D. Francisco de Lemos, que decorreram entre 1787 e 1812. A respetiva frontaria tem três panos e a seu lado, acentuando o pendor verticalista do templo, encontra‑se a torre sineira. O retábulo‑mor, de pedra de Ançã, concheado e ondulado, oferece interessante efeito plástico. Em lugar de destaque, nele se exibe uma escultura de Nossa Senhora com o Menino, de calcário pintado, atribuída a João Afonso; nos intercolúnios, há mais duas esculturas de pedra, representações de São Pedro e de São Paulo. A cobertura da capela‑mor, igualmente pétrea, está retalhada em caixotões. Quanto às restantes capelas da igreja, saliento a da Senhora do Rosário, que combina o forro azulejar com a talha dourada do retábulo.
A Capela de São Sebastião não merece particular detença por parte do esteta. Edifício com alpendre, apresenta, no seu interior, um retábulo de pedra policromada em cujos nichos estão expostas as imagens do padroeiro, de São João e de Santa Catarina.
Já em Varziela, igualmente no concelho de Cantanhede, o jovem que servia no posto de turismo era apenas um claviculário, um chaveiro que nos abriu a porta da Capela de Nossa Senhora da Misericórdia, empresa simples, pequena e graciosa. Foi construída no século xvɪ por mando de D. Jorge de Meneses, figurão de Cantanhede que nela queria ser sepultado.
O visitante vem aqui para se deleitar diante do retábulo‑mor, atribuído a João de Ruão, peça que toca a vista e a alma, ponto alto da escultura renascentista em Portugal. Representa, no painel principal de generoso urdume, Nossa Senhora da Misericórdia, que, ajudada por dois anjos, protege os fiéis com o seu manto. Nos nichos da predela, encontram‑se representações escultóricas de Santa Bárbara, Santa Catarina, Santa Úrsula, Santa Apolónia e da Virgem com o Menino.
Durante a jornada de passeio, vimos gente que celebrava o Dia da Mãe. Com saudade, algumas vezes me recordei da minha. Mas logo se presentificava o meu pai. E isso era tão difícil de suportar que de imediato queria interromper o regresso ao passado, a volta à genetriz. O motim interior era de tal ordem que eu só ansiava a fixação naquele dia, com a Jūratė em Varziela e em Ançã, só desejava pôr o espírito no local onde se encontrava o corpo.
Ao escrevê‑lo, carecente de um lenitivo suplementar, entrego‑me à ideia de que a minha mãe já goza de paz e convoco versos de Fernando Eduardo Carita, do livro bilingue LE DIEU DE L’INACHEVÉ/O deus do inacabado: «O que não somos nunca aqui,/mais além no‑lo devolve o deus agora em dobro,/envolto tão‑só já em um vazio aperfeiçoado/e sem costura.»