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Em La Hulpe, perto de Bruxelas, o domínio Solvay (Domaine régional Solvay) é bom sítio para descansar dos afãs citadinos. A propriedade pertenceu a Ernest Solvay, figura de proa da história industrial belga, e cinge tapetes de relva, árvores dispersas, mata espessa, um verger conservatoire — no caso, um pomar que preserva a biodiversidade da fruticultura valona —, duas lagoas e um lagoacho. Nela se localizam os imóveis de jeito campestre da fundação Folon e o castelo de La Hulpe, edifício oblongo com um torreão envolto por hera em cada um dos quatro ângulos; fechado à visita regular, só abre portas para celebrações e eventos.
Além da flora autóctone (faia, carvalho…), deram‑se ali plantas incomuns na zona, por exemplo, a sequoia‑gigante, o cedro‑do‑japão, o cipreste‑de‑folha‑caduca, o liquidâmbar, o abeto‑de‑douglas e certos tipos de rododendro.
No passeio pelo domínio Solvay, em outubro, cedo avistámos magnífica paramentaria de outono, muito impressiva nas árvores circunjacentes a uma lagoa de águas rasgadas por patos‑reais, l’étang de la Longue Queue. Já do lagoacho vizinho, l’étang Rond, emanava sensação de ocaso: a água ludra estava calma, como numa bacia, e as plantas à tona pareciam mortiças.
Após paragem sob a rama de um frondoso tulipeiro‑da‑virgínia com decote piramidal e folhas de diversas cores (verde, amarelo, bege e castanho), depressa chegámos ao jardim que ladeia o castelo. Rodeado por teixo de boa altura no qual foi aberta uma arcaria com vãos de passagem, radica no cânone francês e não envergonharia Le Nôtre.
Daí descemos até aos edifícios da fundação Folon e posso dizer que a proximidade rebaixa o merecimento. Vivo em Bruxelas há mais de 12 anos e nunca lá tinha ido. Jean‑Michel Folon, artista multifacetado (entre outros exercícios, concebeu selos do correio e cartazes, foi pintor, gravurista, serígrafo, escultor, tapeceiro e vitralista), passou parte da infância em Genval, perto de La Hulpe. A fazer fé num desdobrável, dele são as seguintes palavras: «Comme il nous semblait loin et inaccessible sur la colline. Il était entouré d’un parc sans limite. Nous en avons rêvé. Le jardin aux mille rhododendrons et son château lointain sont devenus la huitième merveille du monde de notre enfance.»
A descrição da obra de Folon patente ao visitante da fundação ultrapassaria os limites do presente texto, mas assinalo que apreciei sobretudo os cartazes — falam depressa e bem — e o conjunto da obra gráfica. Esta o distinguiu no resguardo dos direitos humanos, tema caro ao artista.
De certo modo, a arte de Folon confrontou‑me com a minha vida, atual e futura.
Fomos à fundação num sábado que sucedeu a vários dias de tarefas rotineiras e cansativas. Entre os trabalhos expostos, estava Day after day, pintura que traduz essas jornadas. Nela se vê um carimbo que imprime e repete a impressão de um círculo com figura masculina. Ao ver a imagem, vi‑me na imagem. Nunca a arte tinha reproduzido tão bem o meu quotidiano.
No vezo de defender os direitos humanos, Jean‑Michel Folon ilustrou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Sempre quis reinstalar-me em Portugal quando houver concluído a carreira no funcionalismo da União Europeia. Mas tenho visto na pátria atos e propósitos que ferem aqueles direitos, deslustram o país de brandos costumes e beliscam um desejo de regresso que considerava inelutável. Penso nas circunstâncias da morte de Ihor Homenyuk, no racismo e nos homicídios com motivação xenófoba, no crescendo das atitudes tribalistas e do discurso do ódio, na proposta para, em certos casos, extrair os ovários das mulheres que abortem em serviço público de saúde.
Depois de pausa para café na Taverne de l’Homme Bleu e de, na lagoa cercã — l’étang de la Ferme —, darmos cibo às aves (patos‑reais, gansos‑bravos e gansos‑do‑canadá), cruzámos um pinheiral esmaltado pela luz e pelo poalho e seguimos em direção ao obelisco que Ernest‑John Solvay, neto de Ernest Solvay, mandou construir. A meus olhos, a mais bonita graça da natureza nesse bosque era o amanita‑mata‑moscas, cogumelo vermelho, laranja e salpicado de verrugas brancas na parte superior do chapéu; garrido e bem‑composto no meio da vegetação rasteira, dava gosto vê‑lo. Quanto ao obelisco, encimado por escultura de metal que representa o sol, servia para, de manhã, Ernest‑John ter o astro‑rei ao alcance da vista nas dependências do castelo voltadas a oeste. Achei‑o uma sem‑gracice, um capricho bobo de rico.
Por volta das seis da tarde, o céu anuviou‑se e fizemo‑nos ao caminho de volta.
Na Bélgica, já no dia a dia, já nos giros de fim de semana, amiúde deparo com gente tomada de fel e com situações inverosímeis que me aperreiam. Isso não aconteceu nesta visita ao domínio Solvay. Encontrámos pessoas simpáticas e tanto na fundação Folon como na Taverne de l’Homme Bleu recebemos trato cortês.