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Plágio



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            «Velhaco! Eu já escrevi isto. Plagiou‑me.» No seu gabinete da Faculdade de Economia da Universidade Nova do Porto, Ezequiel Soeiro foi tomado por um turbilhão feito de sensações desagradáveis, quase violentas. Não, o professor Norberto Trigo não lhe faria tal desfeita. Respirou fundo, olhou para o que estava à sua volta, os livros e o saber pareciam não ter sentido. Releu algumas páginas. Esquadrinhou‑as. Folheou o resto do manual universitário escrito por Norberto. Percorreu‑o com os olhos e com ânsia. Ideia atrás de ideia, o piáculo tornava‑se evidente.

            Sim, Norberto fizera-lhe isso, expunha e defendia como seus juízos e conceitos da lavra de Ezequiel, que lhos havia transmitido oralmente e por escrito; e que Ezequiel vertera na sua dissertação de doutoramento, orientada por Norberto.

Ezequiel sentiu vontade de ir ao gabinete do plagiário, de o esbofetear. Pensou dar notícia do sucedido aos meios de comunicação social, decerto interessados naquele enredo que envolvia Norberto Trigo, homem influente, próximo de monopólios e paramonopólios, figura grada de um partido político, nome mencionado quando era preciso desenhar a composição de um governo.

Mas… e as provas? Norberto obrara com astúcia. O manual vira a luz do dia antes de Ezequiel entregar a tese na faculdade (mais tarde, soube‑se que Norberto movera influências a fim de apressar a respetiva publicação).

Os fains da armadilha eram percucientes, tanto mais que, na faculdade cujo corpo professoral Norberto e Ezequiel integravam, a verdade do verniz e dos graus académicos sobrepujava o rigor dos factos. 

            Ezequiel tomou o caminho de casa, os pais esperavam‑no para jantar. Homem de meia‑idade, nunca sentira a necessidade de deixar a morada da família. Tinha em boa conta a cama feita, a comida e a roupa lavada pela mãe, o salário destinava‑se a poupança e à compra de livros do seu ramo de saber, a Economia. Gostava de mulheres, mas vivia com uma dificuldade patológica em se aproximar delas, inimigas de vida balizada por serviços de motorista aos pais, pelo trabalho, pela rotina. Satisfazia as necessidades do corpo sobre uma almofada, com um preservativo comprado discretamente, que nunca depositava nas sobras caseiras, antes num ou noutro contentor de recolha de lixo público.

            Chegou a casa rubicundo, perturbado, e, face à inquietação dos progenitores, logo os pôs ao corrente do sucedido.

 O pai, António Soeiro, tinha particular dificuldade em digerir a surpresa que lhes tocara. Professor jubilado da faculdade em que Norberto e Ezequiel trabalhavam, várias vezes sujara as mãos a pedido e por pressão do primeiro: deitara água benta na nota do filho de um amigo dele, advogado com fama na praça; no exame oral de uma amante de Norberto, delicadamente fizera apenas as perguntas por ele sugeridas; e, suprema generosidade, dera a conhecer a Norberto as questões que constavam da prova escrita a que o filho deste se ia apresentar. Eis a paga por parte do seu colega.

            António era um indivíduo saloio, sem leituras e sem mundo. Nas aulas, expunha a matéria de forma clara e estruturada. Os alunos admiravam o que parecia ser um senhor com valores. A desilusão sobrava para os que o conheciam bem. Sempre desrespeitou assistentes e colaboradores, nos quais delegava tarefas incómodas ou que não oferecessem visibilidade. Tirante algumas viagens institucionais, ao Brasil e a Angola, só uma vez saíra de Portugal, com destino a Andorra. Mas um finório é sempre um finório e, conquanto irritado, imediatamente anteviu a possibilidade de tirar proveito do caso. Anunciou à mulher e ao filho que, no dia seguinte, falaria com Norberto.

António despertou, na sua cama com quatro carapetas douradas, graças ao primeiro crocitar dos corvos nas copas das árvores próximas do quarto. Seguro quanto ao que ia dizer a Norberto, apenas se interrogava acerca do entono a usar. Ele sabia que, de cepa, Norberto era cobarde. Atrevido na trapaça, é verdade, mas desfibrado. E decidiu falar com ele empregando o modo a que se deve recorrer na lida com poltrões.

Telefonou a Norberto, que logo reconheceu abespinhamento naquela voz roufenha. Sem ambages, confrontou‑o com o plágio e instou‑o a encontrar‑se com ele. O seu interlocutor protestou o apreço que tinha por António e por Ezequiel, aventou um mal‑entendido, um equívoco, mas acedeu a conversar com o seu velho colega.

Na presença de António, Norberto tergiversou, desfiou um rol de evasivas e de escusas. Sabendo que mentia, afirmou não ter a noção de «que se tratava de conceções do Ezequiel»; sempre ocupado, era verosímil que não se recordasse de ter ouvido as ideias em causa da boca do seu orientando, António invocava um facto transeunte, que não deixava rasto; quanto à meia dúzia de folhas que Ezequiel lhe entregara, bulia em tantos papéis, e de tanta gente, que nem estava certo de os ter lido.

Roxo de raiva, António atalhou com uma injunção:

— Norberto, na próxima semana você vai participar na reunião do júri de doutoramento do Lúcio Alvarez, meu orientando. Aí há de ser proferido o despacho no qual o júri declara aceitar a dissertação do Lúcio ou, em alternativa, o aconselha a reformular a tese. Pois bem, na ata que há de ser lavrada, munido de dois ou três argumentos, você vai sugerir a reformulação, vai escrever que, se o Lúcio não alterar a obra e a levar a discussão pública na redação atual, votará no sentido do chumbo. E daqui a um mês, quando tiver lugar a reunião do júri de doutoramento do Ezequiel, gabará a tese do meu filho. Não estará sozinho nos elogios, sei que outros elementos do júri também os farão.

 — Mas o Lúcio tem uma bela tese, eu já a li. E é um indivíduo capaz, trabalhador.

António replicou:

— Não quero ouvir mais nada. Talvez o Ezequiel não possa provar o plágio, mas, se você não fizer o que lhe digo, eu mesmo denunciarei algumas das suas vigarices: o tráfico de influências, em especial a favor do seu filho, o saco azul no centro de investigação que dirige, o repetido assédio sexual a colaboradoras e a alunas, a venda do seu voto no doutoramento do Gabriel Feliciano como moeda de troca dos estudos bem pagos que ele para si angariou. Conheço gente no Público e garanto-lhe que o trabalho de um jornalista de investigação o deixará em maus lençóis.

— Boatos, boatos… 

Sim, a descrição correspondia à realidade e Norberto sentiu o aperto de um colete de forças. Levava anos de patranhas e patifarias académicas e nunca se vira diante de alguém que assim o confrontasse, que o ameaçasse de tal jeito. Respondeu:

— António, com calma tudo se arranjará. Vou procurar a melhor solução.

— Espero que sim, no seu próprio interesse. E nunca mais belisque o meu filho, nunca mais.

Chapeau! Mercê da chantagem, António Soeiro lograria que Ezequiel se doutorasse antes de Lúcio, seu colega de disciplina e de secção. Ultrapassá‑lo‑ia na carreira, ganharia ascendente, visibilidade, primado na escolha de cadeiras a ministrar. Norberto percebeu que, movendo influências aqui e ali, António já havia adestrado um outro membro do júri de doutoramento de Lúcio, Ruy de Sarmento e Costa, agora e dessarte formando a maioria — composta pelo próprio António, por Norberto e por Ruy — necessária para proferir despacho no qual se propunha a Lúcio a reescrita da tese, sob cominação de chumbo. Já para a reunião do júri de doutoramento de Ezequiel, nem sequer eram precisos preparos ou conluios. Ezequiel tinha valor e, mesmo que o não tivesse, naquela faculdade ser filho de professor azava grandes feitos, neste caso a summa cum laude no doutoramento.

A boa organização mental acompanha a falta de escrúpulos. Quando saiu da casa de António, Norberto sentiu que só tinha um grão no sapato, um novo grão: Lúcio. Para o compensar por aquilo que iria defender na reunião dos jurados do seu doutoramento, que cenoura lhe poderia dar? Felizmente, estava em causa um filho das malvas, que não era parente de professor nem de gente importante. O isco não teria, por isso, de ser suculento.

Num pronto se fez luz no cérebro de Norberto. A solução era simples: porquanto António Soeiro, orientador de Lúcio, iria desfiar um rosário de censuras à tese, sugerindo a emenda da mesma sob ameaça de reprovação, ele poderia escudar‑se em tal juízo, sufragar a crítica. Se o orientador do doutorando rasgaria as vestes ao falar da monografia, por maioria de razão Norberto poderia brandir parecer negativo. E mais tarde arranjaria umas palavras de apoio a Lúcio.

 

Norberto falou com Ezequiel, lastimou «toda esta situação», asseverou que ela não se repetiria, que teria mais cuidado com os papéis que lhe entregassem e com o que lhe dissessem os seus orientandos. No stresse radicava o problema. Sempre atarefado, necessitava de férias para descansar.

Por seu turno, António aconselhou o filho a ser pragmático, assinalou que nos momentos adversos se discernem os homens maduros. Tranquilizou‑o, garantindo‑lhe que «o traste do Norberto» não repetiria a pulhice e estava amestrado para as duas reuniões de júri que aí vinham:

— Valoriza o lado bom desta estória, Ezequiel. Vais doutorar‑te antes do Lúcio, passarás à frente dele na carreira, terás prioridade na escolha de cadeiras e em convites que a faculdade receba. Na vida, temos de saber dar a volta por cima.

 

O colóquio dos membros do júri de doutoramento de Lúcio refletiu o conchavo e terminou com ata em que se sugeria ao candidato a reforma da dissertação. António, Ruy e Norberto deram largas ao veio crítico, os dois primeiros de forma incisiva, plena de animus nocendi mas com pouca substância, o terceiro valeu‑se da treta aduzida por António e por Ruy. Ao invés, os outros dois integrantes do júri, incluindo o presidente, lavraram em ata comentários laudatórios e bem fundamentados acerca da tese.

Cedo se espalharam as brasas do cartel e da desonestidade. Para Ruy, isso não criou dificuldade particular, era professor noutra instituição, noutra terra. António aproveitou a condição de jubilado para, durante algum tempo, não pôr os pés na faculdade. Norberto tinha afazeres no estrangeiro, o momento não podia ser mais propício. O pó assentaria, as pessoas têm memória curta, a faculdade era dirigida por criaturas que prezavam a pompa e não tinham princípios.

Ciente das virtudes da sua tese e dos motivos subjacentes à recomendação para a alterar, Lúcio mergulhou numa certa carência de orientação e em indefinição quanto ao futuro. Ganhou ódio àquela gente. O going postal assomou ao seu espírito, mas a lucidez que lhe sobrava dizia‑lhe que ele só pioraria a situação. Retirou a tese que havia apresentado e escolheu outro orientador, honesto e com espinha dorsal. Doutorou‑se, claro está, depois de Ezequiel. Cortou relações com António e reduziu ao mínimo institucional os contactos com Norberto e com Ezequiel.

 

A reunião do júri de doutoramento de Ezequiel fez‑se de loas ao candidato, dela resultou despacho de aceitação da tese e a marcação das provas, que decorreram da melhor forma para o candidato, com louvaminhas e balofices de toda a sorte.

Quando publicou a dissertação, Ezequiel antepôs ao texto uma nota gratulatória dirigida a todos os que contribuíram para o sucesso de tal empresa. Nela destacou Norberto como autor de referência em matéria de Economia e agradeceu‑lhe o «modo exemplar» de orientação da tese. Tudo está bem quando acaba bem.

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Paulo Pego
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