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Arrepiaram‑me os modos de condução no IP3, não me recordo de, noutras estradas, ver carros que circulassem a velocidades tão desajustadas à índole do percurso. Espanta‑me que os números da sinistralidade rodoviária nessa via não sejam mais pesados do que já são.
A vila de Penacova desce por encostas que têm no sopé o rio Mondego, à geografia vai buscar muitos dos seus encantos. Cúpidos de vistas cenográficas e desafogadas, eu e a Jūratė fomos a três pontos que nos garantiam soberba estampa: a pérgula concebida por Raúl Lino, cortejada por glicínias, o Penedo do Castro e o Mirante Emigdyo da Silva, com ares de coreto (diversas publicações postas à disposição do turista qualificam‑no de pagode, mas eu só lobrigo ali um coreto). Mesmo que o visitante cinja o passeio a esse trio de miradouros, os postais que eles oferecem justificam a ida a Penacova. Horizontes vastos, montes, rocha, arvoredo, olgas, água e casas, nada falta na combinação da natureza com o pouso dos humanos.
Aliás, sempre Penacova atraiu paisagistas. Recordo, por exemplo, Eugénio Moreira, que em Portugal andou «de tenda às costas, pousando aqui e ali, a amar sítios para, entendendo‑os pelo sentimento, os fixar em pinturas que fôssem sínteses de emoções definidoras do nosso carácter»[1].
A Igreja Matriz exibe frontaria sóbria, em empena de bico, e algumas obras interessantes no interior. A meus olhos, avultam: o fragmento de um retábulo pétreo renascentista que representa a Deposição de Cristo, na sacristia; a escultura de Nossa Senhora com o Menino Jesus, na Capela de Nossa Senhora da Esperança (perdeu cor, mantém expressividade); e, principalmente, o retábulo da capela‑mor, de talha dourada.
A Capela de São João estava fechada, tivemos de nos contentar com a observação do exterior, que vai buscar elegância aos três arcos que rasgam as fachadas e formam alpendre, e também ao contraste entre o branco das paredes e o amarelo dos cunhais e do embasamento.
Almoçámos no Côta, casa que há muito goza do favor do povo. Nem sequer quisemos ver a lista, logo pedimos arroz de lampreia. O arroz malandro e o ciclóstomo foram servidos em travessas diferentes, coube‑nos misturá‑los consoante o nosso gosto. A flauta de sete olhos, sápida, tinha carne firme, tempero certo e não compartilhava o protagonismo com outros ingredientes (ao invés do que amiúde sucede no Minho, aqui o prato não leva chouriço nem presunto). A fechar o repasto, provámos doces de origem conventual, típicos da região: pastéis de Lorvão — feitos com base de amêndoa moída e gema de ovo — e nevadas — bolos com recheio cremoso, de ovos, e cobertura de açúcar branco —, eles e elas demasiado doces.
Em Casal de Santo Amaro, a produção de cal parda teve peso significativo na economia local. Continuam de pé os fornos onde outrora se procedia à calcinação (havia calcário nas proximidades). A lenha, igualmente abundante naquelas paragens, era o material de combustão. Os fornos têm valia histórica e são fotogénicos, mas a música que animava a festa de um grupo recreativo estonteou‑nos e tivemos de abreviar o passeio.
Contemplámos um dos prodígios que a natureza deixou no concelho de Penacova, a Livraria do Mondego, formação rochosa quartzítica que o cinzel do tempo converteu num conjunto que insinua lombadas de livros arrumados numa estante. Daí abalámos para uma cumeeira da serra da Atalhada onde nos aguardavam moinhos de vento cuja estrutura cilíndrica se aperaltava com tons fulvos de fim de tarde.
Noutro dia, noutra sazão, voltei a terras de Penacova para visitar o Mosteiro de Lorvão. Terá sido fundado no século vɪ, habitaram‑no monges beneditinos e, posteriormente, monjas cistercienses. Nele funcionou um hospital psiquiátrico, nele operará um hotel de charme. O traço dos imóveis que o compõem data, no relevante, dos séculos xvɪɪ e xvɪɪɪ.
Guiado por José Rodrigues Pisco, que à visita acrescentou manifesto valor, apreciei a igreja e a respetiva exornação, de estilo barroco joanino já a pender para o rococó.
A porta de entrada, de pau‑preto do Brasil, ostenta aplicações de bronze dourado. Na capela‑mor, em camarins dos altares laterais, dois interessantes trabalhos de prata, a urna‑relicário da Santa Rainha Teresa e aqueloutra da Santa Rainha Sancha. No coro, salta à vista o imponente cadeiral, do século xvɪɪɪ. Disposto em duas ordens, é composição de madeira de jacarandá e de nogueira. Uma estátua policroma de Nossa Senhora da Vida, que também responde a invocação de Santa Maria de Lorvão, de pedra de Ançã e datada do século xɪv, domina um dos altares do coro. Belíssima grade de ferro batido, com ornatos de bronze dourado, separa a nave do coro. Acima dela, um órgão que, como Jano, tem duas faces, uma dá para a nave, a outra abre para o coro.
Na sala capitular, saliento a escultura de madeira que representa Nossa Senhora das Dores (século xvɪɪɪ) e também a peça anunciada como realejo, que é, na verdade, um órgão de armário (do século xvɪɪ, com pintura do século xvɪɪɪ).
Lera notas elogiosas acerca do claustro, acabei desiludido: relva em má condição e carga visual excessiva, resultante dos aditamentos das alas onde será instalado o museu do mosteiro.
Ainda na localidade de Lorvão, fui à confeitaria O mosteiro para que me aviassem de doçaria conventual. Comprei pastéis de Lorvão e nevadas, não tão doces como os do restaurante Côta.
Penacova guardava para mim mais um regalo, agora no Leitão do Aires. Sem vacilar, decidi‑me pelo bicho que dá nome à casa. Serviram‑me dose abundante, que incluía batatas fritas, salada, molho apaladado e uns tassalhos do bácoro, com pele corada e estaladiça. Do crítico, todas as estrelas para o Leitão do Aires, aí aplacou ele a sua gastronostalgia.
[1] FIGUEIREDO, Antero de, Jornadas em Portugal, Paris‑Lisboa, Rio de Janeiro, Livrarias Aillaud e Bertrand, Livraria Francisco Alves, 1918, pp. 218‑219.