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No parque justafluvial de Vila Nova da Barquinha — situado em zona onde outrora predominava o nateiro —, tílias, ciprestes, plátanos, salgueiros e amieiros emolduram um conjunto cenográfico do qual fazem parte, nomeadamente, tapetes de relva, fiadas de áceres, de choupos, de liquidâmbares e de bétulas, áreas de recreio e de detença, caminhos pedonais e, no que mais interessa, esculturas e instalações de artistas portugueses.
Dentre elas, respigo, por critério estético e pelo diálogo de regiões e culturas, Rotter, de Cristina Ataíde, uma obra de metal pintado de vermelho, terminada em 2012. Mediante alterações de volume, material e cor, representa uma merujona, artefacto pesqueiro de vime tradicionalmente usado no Algarve. No jardim barquinhense, a peça estabelece feliz interlocução com o Tejo, com a pesca de fataça, lampreia, sável, boga e savelha. Mercê da fotogenia, saliento ainda os Trianons de Joana Vasconcelos (estruturas metálicas com fitas plásticas pendependentes, de 2012) e a Casa no céu, de Xana, paralelepípedo de cores bem escolhidas, composição com caixas plásticas industriais que cria aparência de casa pré‑fabricada. Para não variar, também esta empresa data de 2012.
Num banco do parque, a mãe de duas crianças, o Santiago e a Matilde, anunciava aos seus rebentos que «vão haver prendas» e eu verifiquei que a democratização antroponímica não traz consigo a normalização do bom uso da língua portuguesa.
Bati para Praia do Ribatejo e lá passeei num troço da margem do Tejo próximo do Castelo de Almourol, ponto importante da Reconquista e fortaleza reconstruída pelos Templários, sob direção do grão‑mestre Gualdim Pais. E que bonito se oferecia o roqueiro, arruçado e emproado lá no alto de ilhota com vegetação e penedia. «Ilhota», escrevi. Talvez seja correto falar de península, pois a falta de chuva pôs a descoberto alpondras que ligam a beira‑rio ao naco de terra em que o castelo se ergue.
No alpendre do Bar do Castelo reparei num colega de curso, senhor que não via há mais de trinta anos. Ele não me reconheceu ou fez de conta que não me reconheceu. Os anos fizeram‑no roliço, parecia uma lontra. Se eu tivesse dúvidas, tê‑las‑ia dissipado: bem empregue é o exercício físico que, em nome da saúde e da estética, faço todas as semanas.
Os pousos para pernoita em Vila Nova da Barquinha não me convenciam, fui jantar e dormir na Golegã, onde já tinha estado durante a manhã daquele dia. Aí visitara a casa‑estúdio de Carlos Relvas e a Igreja de Nossa Senhora da Conceição. A primeira, concluída em 1875, está cercada por aprazível jardim. Pontilhado de árvores, arbustos e flores, nele se encontra Campino, de Delfim Maya, uma de várias esculturas em que o artista mostrou perícia na expressão do movimento. A casa, concebida em conformidade com o mister de fotógrafo exigente, abriga uma bela escada de castanheiro e chão com mosaicos de Rafael Bordalo Pinheiro. Mas o que mais me impressionou foi a parte externa do edifício, é dizer, o traço fino, as fachadas e as escadarias (nesse todo, o revivalismo mourisco convive com o revivalismo gótico). Quanto à Igreja de Nossa Senhora da Conceição, o corpo central da respetiva fronte, enquadrado por dois botaréus, fecha em empena de bico e tem a rasgá‑lo um portal manuelino flanqueado por colunas torsas rematadas por pináculos. Adossada a esse corpo, uma torre sineira, de planta quadrangular, encimada por coruchéu de base poligonal. No interior, apreciei a capela‑mor, forrada com lambris de azulejos azuis e brancos e coberta por abóbada de nervuras artesoada. Neste templo obrou Diogo Boitaca, um dos arquitetos que deu cartas em matéria de estilo manuelino.
Assinalava que voltei à capital do cavalo a fim de jantar e de dormir. Não me arrependi. No Café Central, boa manja (secretos de porco preto), pingato alentejano e novo ensejo para estabelecer termos de comparação entre Portugal e a Bélgica, para chegar a conclusões recorrentes que, de algum jeito, me deixam travo a nostalgia. A jovem prestimosa que me atendeu contou‑me que o namorado trabalhava no restaurante Cantinho da Cidade, em Bruxelas, e com ilusão falou desse estabelecimento e da capital belga. Falhava, porém, nalguns pressupostos. Expliquei‑lhe que, para se ser feliz em Bruxelas, convém ter carteira recheada, resistência emocional, aferro ao que é bom e uma joeira sempre ativa, que permita votar ao desprezo pessoas e modos que incomodem. E ser cosmopolita de coração, não de exibição. Não sei se disse à rapariga que no Café Central se come muito melhor, e por mais baixo preço, que no Cantinho da Cidade. Em quarto com atmosfera de antanho, também correu de feição a pernoita no Hotel Lusitano. Sem as espertinas de noites anteriores, refocilei corpo e alma.
No posto de turismo de Vila Nova da Barquinha, soube que a Igreja Matriz de Atalaia só para missa abre portas. No domingo, dia de missa, pus‑me a caminho da aldeia. Durante o trajeto cruzei‑me com tratores e tratocarros, evidências de intensa atividade agrícola na região.
Singular e harmoniosa nas formas, a igreja de Atalaia, edificada no século xvɪ segundo plano de João de Castilho ou de um mestre da sua oficina, é uma pérola da arquitetura renascentista. A sua frontaria tem cinco panos, os dois dos extremos são rasgados por arcos de passagem. É certeira a imagem a que recorreu José Saramago, que a propósito referiu uma fachada de «ombros largos»[1]. O pano do meio, aquele em que avulta um elegante portal renascentista, fecha em torre sineira enchapelada por um pequeno coruchéu.
O portal, ex‑líbris da igreja, teve programa decorativo com firma de João de Ruão. O respetivo friso vai exornado com elementos grotescos que ladeiam a pedra de armas de D. Pedro de Meneses, mandante da construção do templo. No vão existente entre o entablamento e o arco de volta perfeita, há dois medalhões com bustos humanos. As pilastras que enquadram o portal, assentes em base onde está cinzelado o rosto de um homem, num dos lados, e de uma mulher, no outro, ostentam esculturas que figuram São Pedro e São Paulo; por efeito da passagem do tempo, os ditos rostos estão delidos.
O interior da igreja referve de motivos de interesse. Desentranhá‑los não cabe na economia deste texto e escapa ao saber do respetivo autor, que, mesmo assim, aqui lavra um par de notas. Ressaem o festival azulejar, os painéis que adornam as naves laterais, e ainda os painéis cerâmicos policromos que alfaiam as empenas da nave central e representam cenas do Antigo Testamento, a saber, A Criação do Mundo, O Pecado Original, A Expulsão do Paraíso, Abel e Caim, O Dilúvio e a Entrada dos Animais na Arca de Noé. Merecem igualmente louvores o batistério e seu arreio. Revestido de azulejos, nele se encontra uma despojada pia de pedra e uma edícula onde se guardam os santos óleos. A edícula apresenta moldura de bom gosto à volta do gradeamento de ferro; na parte mais alta do conjunto, dois acrotérios e, entre eles, um motivo concheado.
A homilia teve cariz compassivo e inclusivo, sobremodo a prezei. Foi própria dos tempos atuais e pôs à vista a Igreja que considero, sem derivas ultramontanas, a Igreja do Papa Francisco e do padre Anselmo Borges. Fui observando a assembleia de fiéis e não dei por beatice, apenas senti devoção.
Achei particularmente feliz a maneira como, na parede de um posto de transformação da EDP na Atalaia, Vhils reproduziu, com dimensões generosas, um oleiro a moldar barro. Assim prestou homenagem à olaria local, de inestimáveis pergaminhos, e trouxe um toque da modernidade virtuosa para aquela freguesia que já contava com joia de era pretérita, a supramencionada igreja matriz.
[1] SARAMAGO, José, Viagem a Portugal, 27.ª edição, Lisboa, Porto Editora, reimpressão de janeiro de 2022, p. 286.