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A minha aldeia e freguesia, anichada num tipo de relevo em concha, estava, no início da década de sessenta, rodeada por manchas de pinheiro-bravo e num perder de vista, até ao cume da Serra da Estrela, pelo lado norte. Fazia lembrar um presépio, não iluminado, porque, à época, a única luz noturna era fornecida por simples “lampiões” a petróleo. Os solos eram pobres e a água para rega tinha que ser extraída dos poços com “engenhos” movidos à força de braços. Nos verões de seca, esta faltava e das colheitas, muitas vezes, nem a semente se recuperava, para não falar no duro trabalho braçal ou apenas ajudado por parelhas de vacas que, muitas vezes, nem podiam com a charrua e com carros pesados para transporte de todo o tipo de bens. A fome “batia à porta” de muita gente, pois nem para o caldo de hortaliça e a cozedura da broa tosca de milho e centeio havia géneros.
E se havia muitas bocas, qual ninho de pequenas aves que a mãe tinha que alimentar, então nem dava para enganar o estômago. Dar filhos, rapazes ou raparigas, para “servirem” nalguma família onde eles não existissem e ou mais abastada, melhor dizendo, menos pobre, em troca de comida e dormida, era uma prática habitual nas Beiras e no Minho.” Eu e a minha irmã mais nova fomos mandados para longe de casa por uma única razão: porque os meus pais não tinham dinheiro para criar todos os filhos” – relata o Miguel Sousa Tavares, este seu caso pessoal no seu livro autobiográfico: “Cebola Crua com Sal e Broa”, – este o menu de uma das refeições-uma cebola rachada em quatro gomos com sal e vinagre que se comia com broa.
O meu sonho de continuar os estudos para alem da quarta classe que fiz sem dificuldades de maior na escola da sede da freguesia, a meia hora de caminho a “corta-mato” e apesar de faltar muitas vezes às aulas, porque a minha mãe necessitava de mim para os trabalhos agrícolas, e nem os “TPCs fazer por cansaço, fome e falta de luz noturna, ia morrer com o exame final da quarta classe. Chorei, no final do ano escolar, porque via o meu ténue sonho morrer. A ida para o seminário, (os seminaristas deslocavam-se às escolas para captarem crianças que quisessem seguir a via do seminário/catolicismo) era uma hipótese e de garantida promoção social, mas essa hipótese a minha mãe não cedeu, porque necessitava de mim nos trabalhos agrícolas nos quais as crianças também trabalhavam, nem que fosse para apanhar os grãos caídos das colheitas, ou podendo substituir um adulto em tarefas mais leves. Poderia até ser para ir “ajudar” alguém que ajudou a minha mãe, porque entre os aldeões as ajudas eram feitas em regime de trabalho solidário. O meu futuro e de todas as outras crianças estava traçado, isto é, trabalhar no campo, se houver trabalho, ou partir para outros destinos e outros desafios.
O minifúndio, maioritariamente e de arrendamentos, era composto por solos pobres tornando difícil obter os alimentos para enganar o estomago a famílias numerosas – a média era superior a cinco/seis filhos por agregado familiar. A “fuga”, eram as emigrações para o Brasil, e as migrações para Lisboa e para o Alentejo, etc, onde o latifúndio e a baixa densidade populacional carecia de gente para fazer todo o tipo de trabalhos agrícolas que a pouca maquinaria agrícola existente não fazia ainda.
Foi assim que, num certo dia do final de verão de 1961, apareceu lá na aldeia o feitor dum latifundiário do Alentejo com o propósito de engajar um grupo de trabalhadores dispostos a fazerem uma campanha de cerca de nove meses na sua herdade algures na proximidade de Canal Caveira (concelho de Grândola. Dirigiu-se a um conterrâneo adulto e já com experiência deste tipo de contrato, a que se dá o nome de “Manajeiro”. Era este homem, já tarimbado neste tipo de prestação de serviços, que engajaria cerca de uma dúzia de trabalhadores (!) dispostos a aderir a esta campanha sazonal. Seriam todos do sexo masculino e entre os onze anos e os quatorze anos.
O manajeiro, bateu à minha porta e falando com a minha mãe – o meu pai já há cerca de quatro anos que tinha sido “apanhado por uma erva daninha”, para a qual não havia ainda a cura de hoje e perguntou-lhe se ela estava disposta a libertar os dois filhos mais velhos dos seus cinco filhos, já cumprida a escolaridade obrigatória da quarta classe. A minha mãe escolheu-me a mim, eu com onze anos e o mais velho com treze, para “marchar” e ir ganhar algum dinheiro para ajudar a mitigar as carências dos outros. Por outro lado, era menos um “bico no ninho” a debicar as carências alimentares. O mais velho ficaria para a ajudar nos trabalhos do campo.
O Manajeiro engajou os restantes “miúdos” na minha aldeia e noutras em redor e, em meados de outubro de 1961, partimos para fazer a já descrita “A Primeira Viagem da Minha Vida”, publicada na edição anterior, eu que apenas tinha feito viagens à cidade, algumas a pé, apesar dos doze quilómetros de distância. A minha mãe comprou-me uns tamancos (calçado com base em madeira e couro na parte superior, cravado com “atachas” e uma simples caixa/arca de madeira onde meteu as minhas parcas roupas que serviriam para os nove meses de campanha naquele clima nada ameno do Alentejo (muito frio no inverno e muito quente no verão).
Ali chegado, fiquei a saber que os trabalhadores nativos nos olhavam com azedume e desdém e nos apelidavam de galegos ou «ratinhos» (os provindos das Beira Alta e de outras origens e outros destinos, os nomes eram diferentes (Gaibéus, e Avieiros no Ribatejo, etc) que, em grupo/rancho e com o um capataz ou Manajeiro, executavam diversas tarefas agrícolas com as mãos, enxadas, foices, etc, nos latifúndios alentejanos, colmatando a crónica falta de mão-de-obra daquela província do sul de Portugal. Vários autores (Alves Redol, Saramago, etc.) produziram obras literárias sobre esta gente pobre que era mal-amada pelos povos, igualmente pobres, dos lugares onde aportavam.
Nós, os Ratinhos, sujeitávamos-mos a uma vida dura e cruel. Eramos gente simples e dos mais pobres da Beira, que aceitávamos ir para lá trabalhar durante meses a fio, envolvendo-se nas tarefas agrícolas mais duras. Manhã cedo, antes do nascer do sol, seguíamos em grupo, orientados pelo capataz que tinha a responsabilidade de falar com o feitor, de manter a coesão do grupo e disciplina, como um tutor, e de a todos trazer de volta no final da campanha. Trabalhávamos arduamente e vivíamos em condições miseráveis, dormindo em tarimbas, sobre palha de arroz impregnada de percevejos. Arranchávamos onde calhava, comendo papas e migas de pão e azeite quente e servindo-se todos da mesma gamela, todos em redor desta e apenas com uma colher como utensílio individual que cada um guardaria.
Trabalhávamos descalços e não suportando o frio de inverno, escrevi à minha mãe a pedir que me enviasse, dentro duma carta, uma nota de 20$00 (vinte escudos) e com eles desloquei-me, talvez pela única vez, à loja em Canal Caveira onde comprei umas galochas infantis. Agasalhos para o agreste frio alentejano no Inverno? Só me lembro duma “capa feita com uma saca de serapilheira” que deixava fluir os pingos de chuva.
Trabalhávamos de “sol a sol” e “enregávamos” no local onde naquele dia íamos executar as tarefas. Depois, do por do sol, “ala para o quartel”. Folgávamos apenas nas tardes de domingo. As refeições eram, invariavelmente, arroz com hortaliça (1ª refeição) e ao almoço, alternadamente, arroz com grão-de-bico e arroz com feijão frade.
À noite, a ceia era uma refeição de pão alentejano em azeite a ferver, a que chamávamos de migas (sem carne ou outro conduto). Outro tipo de comida? Só se algumas ovelhas fossem atropeladas pelo comboio que atravessava a herdade. O “cozinheiro” era um rapaz do rancho e depois havia outros com tarefas complementares (o aguadeiro, que com um barril de madeira de dez litros tinha que fornecer a água para beber, com uma concha de cortiça, e cozinhar no local de trabalho – eu fui o indigitado, mas o Manajeiro teve que escolher outro porque eu não conseguia elevar o barril para o ombro).
A herdade tinha algumas varas de porcos pretos (vários tamanhos) e rebanho de ovelhas, com o respetivo pastor, e porqueiro, mas que sozinhos tinham dificuldade em controlar aquela bicharada pelo que eu, qual sorte grande por ser eu o mais novo e o mais pequenino, – as minhas mãos não conseguiam manusear a foice e abarcar as plantas de trigo, nem com uns canudos de cana enfiados nos dedos dessa mão, nas ceifas, – passei muito tempo como “ajudante de pastor” e de “porqueiro”. Guardar os suínos era muito complicado porque eles “sabiam” onde havia searas, favais, etc. e uma pequena distração, e lá iam eles. Num certo final dum dia “perdi o norte” e vagueei pelo meio do chaparral até que já noite me localizaram.
A certa altura, fui recebendo algumas cartas muito tristes de Lisboa e, na escala, no regresso, um primo levou-me a visitar o meu pai…Ali voltaria, cinco meses depois, para ficar até hoje. O ordenado líquido era de 200$00/mês (duzentos escudos) a pagar no final do contrato, para evitar deserções? O Manajeiro entregou o dinheiro à minha mãe, quando na manhã do dia de S. João, aportámos a Viseu, a cidade de partida em meados de outubro de 1961, fazendo agora a viagem em sentido inverso que durou mais de trinta horas, pois eram usados os comboios chamados de “comboio-correio”, noturnos e com paragens em todas as estações.
Não mais fui como “ratinho” para o Alentejo, – a emigração para a Europa e consequente falta de “ratinhos, avieiros e gaibéus” e trabalhadores locais, levou os agrários a investirem na mecanização dos trabalhos agrícolas – mas fiz depois mais viagens de luta contra o destino: filho de pobre está condenado a ser pobre e/ou a lutar arduamente contrariando esse destino fatal. Eu lutei e consegui. Super-herói? Não, pelo que incentivei sempre os meus “companheiros” deserdados da sorte, a lutarem como eu. A Primeira Viagem da Minha vida, afinal, foram duas e de sentido oposto, mas ambas com o mesmo destino: o futuro duma criança.
Serafim Marques
Economista (Reformado)