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Pergunta Italo Calvino em Um Eremita em Paris, que não se passa exclusivamente em Paris, mas em grande parte na América: «Conseguirei arranjar tempo para ler? Não sei (isto é, penso sempre que tenho qualquer coisa melhor a fazer do que ler) […]».
É muito divertido que estas palavras sejam emitidas por um grande escritor e leitor, mas compreende-se. Num tempo em que as distracções, os divertimentos e os hobbies eram escassos e nem sempre acessíveis comparando com o que acontece hoje, mas de qualidade, ao contrário do que hoje sucede, consigo compreender que a leitura tivesse de rivalizar com fortes adversários, mesmo para um escritor, mesmo para alguém para quem os livros eram a vida, ficando estes, contudo, quase sempre… vitoriosos. Sendo que, actualmente, com a variada e luxuriante oferta, facilitada e facilitadora, de tão duvidosa qualidade, acaba a leitura por ficar não para um segundo ou terceiro plano, mas para o fim da lista. Ou nem isso.
Para ler o que leio, prescindo de ver televisão, de fazer longas refeições, e até de me dedicar mais a algumas actividades que me agradam, como trabalho de costura, música, dança, desenho e passeios sem destino. Disciplino-me para não deixar de fazer o essencial, como caminhar, conviver com as pessoas que me cativam, familiares ou não, ter algumas práticas de saúde física e mental, cozinhar alquimicamente e brincar com os inocentes da minha vida. Claro que não falo da escrita, essa não está em causa, e tanto pode ser desencadeadora de leituras, como ser desencadeada por elas. Há ainda essa grande instituição propícia à leitura. Não, não são as bibliotecas, são as filas para qualquer coisa, de preferência espaços públicos, maravilhosos pelo tempo de espera que nos dispensam: os consultórios, as paragens dos transportes, as lojas do cidadão, os variados gabinetes em cujas salas de espera vamos passando grande parte das nossas vidas, o que deixa de ser tão grave se levarmos connosco o antídoto, que é um livro. A natureza é uma benévola sala de espera totalmente compatível com o ler, como os jardins ou até mesmo o meu pequeno terraço andaluz/sefardita em Lisboa. O que é triste é ver que todos estes espaços maravilhosos são desperdiçados, sendo trocados os livros pelos telemóveis e afins. Por isso, quando estou com um bebé que reclama o meu tempo e o diálogo peripatético, o telemóvel fica de lado e é para ele, o menino, exclusivamente, a atenção. Para que um dia mais tarde ele se recorde, e quando os humanos tiverem desaprendido de se olhar e escutar sem uma máquina pelo meio, haja ao menos um olhar disponível no mundo, para quem ainda souber o que significa. Que tem isto a ver com os livros? Tudo. São a minha única concessão nesta mediação. Se o telemóvel repousa na sua presença, já o mesmo não faço com os livros, e se o vejo ocupado a brincar, faço o mesmo e pego num livro, o que ele pode compreender. Entregamo-nos à mesma actividade. Para além de que ele mesmo o faz frequentemente.
Quanto a Calvino, evidentemente que aquilo que escreveu só pode ser uma blague. Admito, no entanto, que alguém, embora adorando fazer o que faz, se é obrigado a fazê-lo profissionalmente, seja forçado a leituras que poderão não ser as que escolheria, o que faz toda a diferença.
Quanto à minha experiência, pois pelo menos conscientemente não sou condicionada a ler nada que não me apeteça, confesso que fico frequentemente contrariada quando, num atendimento público, embrenhada na leitura, as senhas começam a galgar sem pudor a uma velocidade inadmissível. Como quando, criança e adolescente, a chamada para a refeição me interrompia a leitura e quase me fazia render à prática do jejum. Como hoje, face a um painel electrónico enlouquecido a passar números, e não imobilizado num único utente como nos acostumámos a ver, me apetece trocar com o detentor da última senha. Nunca me atrevi a tal, isso, uma pessoa normal não pode fazer.